Os poderes
Porquê os alemães?
Desemprego em tempo de paz
Coisas sobre comissões de inquérito (1)
Finalmente, o inquérito em apreço está a levantar a outra velha questão da colaboração com uma CPI dos tribunais e do Ministério Público. Convém sempre recordar a este propósito a jurisprudência muitas vezes «esquecida» do Tribunal Constitucional, nos termos da qual só em casos excepcionais é que tal colaboração pode ser recusada. E a verdade é que tal jurisprudência tem vindo a ser progressivamente posta em prática, não obstante se ter partido de uma situação em que qualquer pedido de colaboração nesse sentido por parte de uma CPI era visto, se não como um «crime de lesa-majestade», pelo menos como uma inapelável violação do princípio da separação dos poderes ou uma «intolerável intromissão do parlamento na função jurisdicional». Hoje de facto, os tribunais e o Ministério Público começam a considerar como perfeitamente conforme com a Constituição a colaboração com uma CPI. A própria comissão em apreço terá já obtido documentos sob confidencialidade por parte daquelas entidades – confidencialidade essa a que deverá manter-se rigorosamente vinculada.
(Nuno Piçarra, o único académico português que estudou com profundidade o regime das comissões de inquérito, num texto que encontrei aqui). Nele se diz, por exemplo, porque é que a recusa do primeiro-ministro em depor presencialmente na comissão lembra velhos tempos em que o cargo se chamava Presidente do Conselho. Este excerto refere-se ao dever de colaboração dos tribunais e do Ministério Púbico com uma CPI, sem que tal seja encarado como uma violação do princípio da separação de poderes. Piçarra fala aqui "na jurisprudência esquecida" do Tribunal Constitucional. Já lá vamos.
A questão da criminalização da responsabilidade política
1. Este texto, aviso já, é longo e necessário. Usei a frase com que começo o texto, nestes exactos termos, no meu post "A comissão e as suas circunstâncias". A frase, se bem repararam, termina com um link para o título de um livro do teórico alemão Otto Kircheimer intitulado Political Justice, um livro publicado nos anos 60 do século passado (o link foi entretanto ocultado pelos membros do blog Câmara Corporativa, na transcrição que fizeram da mesma frase). A construção que usei destinava-se a ilustrar a tensão inevitável que sempre existe, e sempre existiu, entre política e justiça nos procedimentos de responsabilização política. Em bom rigor, será melhor qualificá-la como uma tensão entre democracia e poder judicial, mas já lá irei. Convém dizer que a responsabilidade política é um procedimento conduzido por políticos com finalidades políticas: a sanção do mau governo, o cumprimento de normas de conduta política, a exposição e condenação pública do abuso de poder e de condutas políticas censuráveis, a remoção do poder de governantes que ultrapassaram todos os limites. Digo "conduzida por políticos" para me referir sobretudo aos parlamentares, porque são os parlamentos os representantes directos da vontade do povo e a responsabilidade política não tem outro objectivo último senão proteger a identidade entre governantes e governados, impedindo o poder governativo de trair ou subverter a delegação de poder popular que recebe através do Parlamento. As comissões de inquérito são um dos instrumentos, diria o mais excepcional, de materializar o princípio da responsabilidade política.
2. A realização daqueles objectivos corporiza aquilo a que chamei, sem originalidade, justiça política, apropriando-me do título de Kircheimer. No meu livro "Teoria da Responsabilidade Política" refiro-me a estes aspectos, ao abordar a relação entre responsabilidade política e moralidade política. Justiça política ou moralidade política nada têm que ver com justiça criminal. Não é essa justiça penal que os procedimentos de responsabilização política realizam. Ninguém pode ser obviamente condenado a cumprir uma pena no contexto de um procedimento de responsabilidade política (isto hoje parece-nos óbvio, mas não o era no passado e ainda hoje os procedimentos de impeachment nos regimes presidencialistas são um bom exemplo de procedimentos simultaneamente de responsabilização política e criminal); os pressupostos da responsabilidade penal também não são tidos em conta na responsabilidade política. Por isso, tal como escrevi, ao mencionar a ideia de que os políticos devem fazer justiça (política) mas não a justiça significa que os políticos, no quadro dos procedimentos de responsabilidade política, devem orientar-se pelas finalidades próprias dessa forma de responsabilidade: investigar factos e condutas políticas, imputáveis a titulares do poder executivo, para as apreciar e, se for o caso, censurar no plano político. Devem assegurar o bom governo e proteger aquilo a que os anglo-saxónicos chamam moralidade política. Não se podem substituir aos poderes condenatórios dos tribunais, não podem julgar, punir, prender, coagir ou apurar ilícitos penais de qualquer governante (tal como não podem efectivar responsabilidades civis). Apreciam e sancionam os "ilícitos" políticos. Tudo isto estava expresso no meu post. Tudo isto também se encontra no meu livro.
3. Fui no entanto acusado mais do que uma vez, pelos funcionários e anónimos cobardes deste blog de assessores, depois de terem transcrito excertos do meu livro "Teoria da Responsabilidade Política", de manter dois discursos sobre as relações entre responsabilidade política e responsabilidade penal, contradizendo o que escrevi acerca da criminalização à responsabilidade política; um discurso, motivado por preconceitos políticos e favorável a essa criminalização; e outro, no plano universitário, reagindo contra essa criminalização. Já afirmei que esta é uma mentira que me atinge profissionalmente perante os meus colegas, alunos e professores das instituições universitárias a que estou ligado. Sugerem insultuosamente que aquilo que já escrevi no plano universitário é atirado para o lixo no plano político. Tenho boa couraça contra insultos pessoais e contra discordâncias virulentas. Mas não estou disposto a aceitar ataques mentirosos e canalhas no plano profissional que põem em causa a minha integridade. Como acredito na liberdade académica como uma liberdade inseparável de determinados "standards" éticos e como vejo a mentira repetida novamente neste segundo post (e acreditem que reagirei contra ela de modo próprio), reafirmo que só a mais descabelada má-fé me pode acusar de contradição na posição que defendi a respeito da utilização das escutas do Face Oculta pela comissão parlamentar de inquérito. Como juristas que são, estas pessoas sabem o que fazem e o que dizem. Sabem o que percebem e o que não querem perceber.
4. No meu livro "Teoria da Responsabilidade Política" procuro distinguir responsabilidade política e responsabilidade criminal tal como faz a Constituição e também a doutrina portuguesa. Essa separação resulta, desde logo, do artigo 117º da Constituição, mas também dos fins e consequências específicas de cada uma das responsabilidades, dos pressupostos em que assentam, dos procedimentos pelos quais se desenrolam. Mais: no meu livro insurjo-me também contra aquilo a que se tem chamado, nas últimas décadas, de "criminalização da responsabilidade política" e defendo que o esquema de responsabilidade preferencial para avaliarmos e reagirmos contra condutas políticas é e deve ser a responsabilidade política. (Nada disto, de resto, tem que ver com os poderes das comissões de inquérito, que eu nem sequer discuto no livro). Nas últimas décadas este fenómeno tem sido abundantemente discutido em França; e também foi em Portugal (recordam-se do processo-crime que foi instaurando a Leonor Beleza, por causa do plasma contaminado?).
5. O que significa essa tendência reconhecível em muitos regimes políticos para a "criminalização da responsabilidade política"? Como a própria palavra sugere, criminalizar a responsabilidade política significa, em primeiro lugar, usar os procedimentos de efectivação da responsabilidade criminal para afastar governantes do poder através de processos e condenações penais. Em vez de os "ilícitos" políticos serem apreciados e "julgados" em sede política, são os procuradores públicos e os tribunais criminais que se substituem aos parlamentos na responsabilização (criminal) dos governantes. A responsabilidade criminal toma, pois, inteiramente o lugar da responsabilidade política. A perda do poder, sanção última da responsabilidade política, é substituída pelo cumprimento de penas e outras sanções criminais. Foi exactamente isso que se tentou, no início dos anos 90, no processo-crime contra Leonor Beleza, porque as responsabilidades dela como ministra da sáude eram políticas e deveriam ser apreciadas nessa instância. Por outro lado, a criminalização da responsabilidade política consiste também em usar o direito penal para prevenir e punir condutas políticas defeituosas. O exemplo no nosso direito é a lei que define os crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos (Lei nº 34/87). Muitos daqueles tipos penais são discutíveis e provavelmente inaplicáveis, por traduzirem essa mesma criminalização. Tivemos um bom exemplo disso com o crime de atentado contra o Estado de Direito previsto na mesma lei que o procurador de Aveiro considerou preenchido, baseado nas escutas entre Armando Vara e José Sócrates que Noronha da Costa declarou nulas. O preenchimento daquele crime tem uma dimensão política e uma subjectividade tão evidentes (o conceito de Estado de Direito) que ficou demonstrado que a criminalização da responsabilidade política é a pior solução para responsabilizar politicamente os governantes. Porquê? Porque os tribunais e o poder judicial enfrentam sistematicamente nos processos políticos tensões no confronto com outros órgãos de soberania, porque acabam presos e desgastados pela luta política, porque enfrentam questões de legitimidade, porque as suas decisões podem ser contestadas de uma forma que põe em causa a sua credibilidade. Na verdade, temos assistido a tudo isto nos últimos tempos.
7. Como explicar tamanha coisa? Uma comissão que tem poderes judiciais para realizar um inquérito político? Uma comissão que pode solicitar a colaboração do Ministério Público e dos tribunais? Não será isso uma violação grosseira da separação de poderes? Não haverá confusão entre responsabilidade política e responsabilidade penal? Não se poderá dizer que as comissões de inquérito parlamentar, no exercício dos seus poderes de investigação judicial, consubstanciam um caso de criminalização da responsabilidade política? Não. Apesar de a Constituição lhes conferir poderes de investigação próprios das autoridades judiciais (o artigo 178/5) e a lei dos inquéritos lhes permitir requerer o direito à coadjuvação de outras entidades públicas, incluindo tribunais, e de solicitar documentos judiciais pertinentes para o inquérito (art. 13º da lei dos inquéritos), as comissões de inquérito estão impedidas de condenar criminalmente e de julgar à luz do direito penal político os governantes objecto de inquérito. Têm poderes de investigação judicial, mas sem que isso as transforme em órgãos judiciais. Têm poderes instrutórios, mas sem que isso os transforme em juízes de instrução. Embora possa haver pontos de contacto entre ambas, as comissões de inquérito não efectivam responsabilidades criminais ou civis de nenhum governante. Não julgam, não prendem, não obrigam ao cumprimento de penas, etc. Por que são então investidas de poderes judiciais se a responsabilidade que apuram é exclusivamente política? A pergunta é interessante. Obrigar-nos-ia a revisitar historicamente o papel das comissões de inquérito e a traçar uma fronteira, que tem de existir, entre o poder parlamentar (na sua função de responsabilização política) e o poder judicial. De qualquer maneira, o fundamento desses poderes só pode ser o compromisso intenso do regime político português com a democracia, entendida como controla e responsabilidade dos titulares do poder: as comissões de inquérito são órgãos parlamentares e, nessa qualidade, titulares de um mandato que advém directamente do povo. Devem escrutinar o poder executivo à luz e no comprimento desse mandato democrático. Se exercem poderes de investigação judicial, é para concretizar o princípio democrático, é para permitir que o povo possa conhecer os responsáveis por condutas políticas nocivas que nunca aprovaria nem poderia aprovar se as tivesse conhecido. Com limites? Com certeza. Mas é à luz desta prevalência da democracia e, por via desta, da responsabilidade política que devemos entender os poderes judiciais das comissões de inquérito.
8. As comissões de inquérito encontram-se por isso nesse território de fronteiras instáveis entre a democracia e a justiça. Não tanto entre responsabilidade política e responsabilidade criminal, porque só podem apurar e decidir sobre "ilícitos políticos" e porque as suas diligências não tem quaisquer consequências em sede penal. Como é evidente, são essas fronteiras instáveis que colocam dúvidas neste caso das escutas da comissão ao caso PT/TVI. Existem problemas na delimitação dos seus poderes de investigação e, em particular, na compabilização entre os poderes de investigação das comissões de inquérito e os direitos fundamentais, mas não existe qualquer confusão entre responsabilidade política e responsabilidade penal. O objecto da comissão ao caso PT/TVI não é apurar se Sócrates cometeu um crime mas se Sócrates conhecia a operação política conspirativa na compra da TVI no ano passado, em véspera de eleições. Onde começam e terminam então os poderes de investigação das autoridades judicais atribuídos às comissões de inquérito? Vou voltar a este ponto num próximo post. Para já, concluo como comecei: as contradições de que fui acusado, por tratar este tema em dois contextos profissionais distintos, são uma absoluta efabulação de um bando de cobardes que vivem a coberto do anonimato. É uma desqualificação pessoal e profissional verdadeiramente digna do KGB, escola em que estes badamecos bebem todos os dias.
(texto corrigido)
Law meets him everywhere
Continuem a tentar
Sim
E qual é o défice da California?
CALIFORNIA CONSTITUTION ARTICLE 16 PUBLIC FINANCE SECTION 1. The Legislature shall not, in any manner create any debt or debts, liability or liabilities, which shall, singly or in the aggregate with any previous debts or liabilities, exceed the sum of three hundred thousand dollars ($300,000), except in case of war to repel invasion or suppress insurrection, unless the same shall be authorized by law for some single object or work to be distinctly specified therein which law shall provide ways and means, exclusive of loans, for the payment of the interest of such debt or liability as it falls due, and also to pay and discharge the principal of such debt or liability within 50 years of the time of the contracting thereof, and shall be irrepealable until the principal and interest thereon shall be paid and discharged, and such law may make provision for a sinking fund to pay the principal of such debt or liability to commence at a time after the incurring of such debt or liability of not more than a period of one-fourth of the time of maturity of such debt or liability; but no such law shall take effect unless it has been passed by a two-thirds vote of all the members elected to each house of the Legislature and until, at a general election or at a direct primary, it shall have been submitted to the people and shall have received a majority of all the votes cast for and against it at such election.
(e continua).
A comissão e as suas circunstâncias
Escreve o Juiz-Conselheiro Eduardo Maia Costa aqui:
Tenho como seguro que a ingerência nas comunicações só é admissível em processo penal, tal como diz o nº 4 do art. 34º da Constituição, e que esta norma, pela sua excepcionalidade, é insusceptível de analogia.
Por isso, não sei o que estão a fazer as escutas telefónicas do caso "Face Oculta", que é um processo judicial, num inquérito parlamentar, que não tem a natureza de investigação criminal.
With all respect, penso que Eduardo Maia Costa não tem razão. O seu argumento é aliás demonstrativo de um non sequitur. A presença das escutas da "Face Oculta" no inquérito parlamentar ao caso PT/TVI não pressupõe nenhuma aplicação analógica do artigo 34º/4, que ele tem como "segura", mas uma aplicação directa não só dessa norma constitucional como de outras normas.
O que o artigo 34º/4 refere é que está proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, das telecomunicações e nos demais modos de comunicação, salvo nos casos previstos na lei em matéria de processo penal.
A regra é a regra; a excepção é outra regra diferente. As autoridades públicas só podem intrometer-se nas comunicações privadas e nos outros meios de comunicação dentro dos casos previstos na lei de processo criminal.
O artigo 34º/4 proibirá que uma comissão parlamentar, nos seus poderes de investigação análogos aos das autoridades judiciárias, faça uso autónomo de diligências que autorizem intromissão nas comunicações privadas fora do processo criminal. Dito de outro modo: embora gozem dos mesmos poderes de investigação das autoridades judiciais, podendo nomeadamente interrogar pessoas, as comissões de inquérito não têm poderes para autorizar intromissões nas comunicações privadas à revelia dos casos e das garantias do processo penal.
Mas o artigo 34º/4 já não proibirá que, num inquérito parlamentar (e para-judicial) conduzido por órgão de soberania, a comissão parlamentar consulte meios de prova resultantes de apreensões ou intercepções de comunicações particulares se estes tiverem sido validamente autorizadas e executadas nos casos previstos na lei em matéria de processo criminal. Desde que autorizadas e validadas de acordo com a lei no processo penal, poderão ser usadas no âmbito de processo de inquérito.
Por isso, não se pode estranhar o que refere a lei dos inquéritos parlamentares (art. 13º):
3 - As comissões podem, a requerimento fundamentado dos seus membros, solicitar por escrito ao Governo, às autoridades judiciárias, aos órgãos da Administração ou a entidades privadas as informações e documentos que julguem úteis à realização do inquérito.
Entre esses documentos e informações requisitáveis estão obviamente as escutas validamente autorizadas nos casos previstos na lei em matéria de processo penal.
E não vale dizer que um inquérito parlamentar não tem a natureza de uma investigação judicial, pelo que o processo penal nunca poderá ser "utilizado", com as devidas adaptações, dentro do processo de inquérito.
No plano das consequências, a afirmação é correcta. Nenhum inquérito tem competência para decidir a culpa penal de uma pessoa. No plano deontológico, a afirmação não é rigorosa. As comissões de inquérito são materialmente autoridades judiciárias, no que respeita aos factos que investigam e às responsabilidade políticas que visam apurar. É a própria lei dos inquéritos que remete para o processo penal em inúmeras situações. Nos casos omissos, o processo penal aplicar-se-á também subsidiariamente.
Aqui, não há sequer caso omisso. Interpretando o artigo 34º/4 da Constituição, o processo penal e o artigo 13º da lei dos inquéritos, verifica-se que são directamente aplicáveis e dão conta do problema. Não há assim qualquer aplicação analógica (e ilegal) da norma excepcional da Constituição. Como eu dizia, a excepção é outra regra distinta da regra principal.
Percebo as reservas de Eduardo Maia Costa e percebo as dúvidas e as cautelas de muita gente. Estamos habituados e formatados para ver a justiça e a política como domínios absolutamente separados. Temos motivos para isso. Essa separação sedimentou-se ao longo da História. É um processo complexo que, entre outras causas, resulta da nossa necessidade em definir espaços da organização política protegidos da imprevisibilidade da política e das paixões da democracia. O poder judicial é um desses espaços. Os juízes não são eleitos, nem os políticos podem fazer justiça.
E, no entanto, devem os juízes "administrar a justiça em nome do povo", diz a Constituição, e devem os políticos fazer justiça, não a justiça, mas outra justiça, uma justiça que seja deste tipo. Por isso, há sempre momentos em que justiça e política inevitavelmente se cruzam, momentos em que um juíz é obrigado a pensar politicamente e um político, juridicamente. Podemos pensar em muitos exemplos da primeira situação. Dou um exemplo da segunda: a lei dos inquéritos parlamentares nada diz sobre a diferença entre informações públicas e privadas consultáveis pelos membros da comissão. Pensar em termos jurídicos significa que qualquer membro que se documente com o conteúdo destas escutas deve afastar liminarmente o uso e, na medida do possível, o conhecimento de todas as informações privadas.
Bem sei que esta comissão de inquérito não irá a lado nenhum. Não porque esteja tolhida pelo seu próprio labirinto. O problema não é a comissão mas as suas circunstâncias. O PSD não deseja a saída antecipada de Sócrates; e a crise em que estamos metidos assusta toda a gente. Quando vejo os funcionários do governo disciplinados e amestrados para defender o indefensável atacarem, por exemplo, "o filósofo da Marmeleira" ou o relator da comissão, João Semedo, um dos mais interessantes deputados da Assembleia, não estão a mostrar a sua profunda má-fé e ignorância diante dos valores que acabei de referir. Mandam-lhes e eles obedecem. Estão a exibir uma fraqueza infinitamente mais grave: o repúdio pela própria noção de democracia, entendida como controlo e responsabilidade, e pelos meios que temos, mal ou bem, para realizar esse controlo. E como se costuma dizer, não há democracia sem democratas. É verdade.
Fuel
Saldanha Sanches (2)
Os abutres do FMI
José Luís Saldanha Sanches
“Expresso”, de 24.12.2009.
Toda a gente sabe que, mais dia, menos dia, os nossos credores vão-se mostrar inquietos, a conta vai surgir e as hipóteses são duas: reduzir as despesas ou aumentar os impostos.
Aumentar mais os impostos será desastroso: há um limite para a carga fiscal – um limite político – que já foi largamente atingido. As pessoas, as empresas e os consumidores não podem pagar mais.
A solução seria reduzir a despesa pública: mas qual despesa pública?
O serviço nacional de saúde constitui um requisito elementar de civilização. A segurança social já teve as reformas que deveria ter. Com a segurança vai ser preciso gastar mais ou pelo menos melhor.
O alvo das reduções deveria ser outro: não se pode continuar a despejar dinheiro para cima das regiões ou das autarquias e o pagamento dos submarinos não pode conduzir a um aumento das despesas militares que deveriam ser congeladas; por mais que isso irrite os senhores sargentos.
Quanto às regiões, uma coisa é garantir a todos os portugueses, vivam onde viverem, os mínimos exigidos pela dignidade humana. Outra é engordar as insaciáveis máquinas partidárias acampadas à volta das autarquias e das regiões.
As autarquias e as regiões são estruturas políticas dotadas de autonomia financeira e poderes tributários: o nível de despesa pública deve ser um decisão dos munícipes e ou dos habitantes das regiões e deve ser financiado pelos impostos aí cobrados.
Há um dever de solidariedade nacional dos portugueses com mais rendimentos para os portugueses mais desfavorecidos: mas não há qualquer dever de solidariedade entre regiões que se traduzem em transferências financeiras dos recursos obtidos juntos dos contribuintes com menos rendimentos (exemplo: receitas do IVA) para as máquinas partidárias e empresas de obras públicas das autarquias e regiões. Sem redução de despesas, temos o aumento dos impostos que vai acentuar a transferência dos sectores produtivos para os improdutivos e consagrar o desperdício de recursos: o Governo Sócrates atingiu um tal estado de fraqueza que não pode recusar nada a quem ainda o apoia, incluindo às empresas do regime que insistem em construir estradas.
Nesta perspectiva o Sócrates sem maioria, ainda mais refém de interesses especiais, é ainda mais nocivo do que o Sócrates com maioria. A maioria na assembleia deveria travá-lo - mas isso não faz, bem pelo contrário.
O que significa que as medidas correctivas só serão tomadas pela pura pressão externa: do FMI, de Bruxelas, dos credores. Com um problema: as medidas correctivas tomadas por imposição dos credores são sempre as piores.
Saldanha Sanches
Pitta don't preach
Eduardo Pitta, tentando convencer-se a si próprio de que o mundo não é redondo, ensaia a seguinte tese: "A visita do Papa é uma visita de Estado. Para a sociedade laica não representa mais nem menos do que representaria a visita de Jacob Zuma ou Ólafur Grímsson. Ponto."
Os zeladores
Está a tornar-se penosa a tentativa de alguns, contra todas as evidências - incluindo as tão queridas evidências sensoriais, como visão e audição, e racionais, como a lógica e a aritmética -, de desqualificar a visita do Papa, equiparando-a a um qualquer "evento" ou fenómeno pop, cultural ou futebolístico. Penosa porque mostra o quão patético se torna o ser humano em desespero de causa. Penosa, também, por exibir a seco pobres cabeças burocráticas no âmbito das quais a mesquinhez e o ressentimento levaram a melhor sobre o pudor.
D'aprés Monty Python
A House divided against itself cannot stand
Primeiro as semelhanças, depois as inverosimilhanças
Desconfio que o Filipe não percebeu bem. Não há plural, não há maruja. O que temos é um e só um passarão travestido. Dos grandes.
Apreciem este padrão de comportamento comum: a mesma ortografia disléxica (erros invulgares: sem origem fonética); o mesmo estilo afectado e maternal (a obsessão com a pequenada traquina e a rapaziada maroteca a precisar de açoites), o mesmo fetiche com armamento (1; 2; 3) e, sobretudo, a mesma técnica de calúnia (felizmente rara nos blogues) para agredir aqui Inês de Medeiros com insinuações vagas; aqui o Pedro Picoito e aqui e aqui o FNV; reparem na insinuação e invocação de factos (verdadeiros e falsos) que não integram o perfil público do adversário. E depois vejam a coincidência de alvos entre criador e criatura.
Enfim, para começar aqui ficam algumas semelhanças. Tratarei mais tarde das inverosimilhanças.