Retrato de uma decadência

Não se demitem, claro que não.
Qual é a surpresa ?
O manual de sobrevivência para estas coisas está escrito e consolidado. A prática confirma a eficácia da técnica.
Os visados negam tudo; contra-acusam inimigos difusos e denunciam cabalas montadas por anónimos. Por vezes avançam com o nome de um jornal ou televisão. Do outro lado, do lado do povo, ninguém acredita na auto-proclamada inocência; todos se indignam nos cafés e ao almoço; um ou outro colunista protesta, mas só uma vez. Nenhum insiste, com medo de parecer obcecado ou sem imaginação.
Não acontece nada.
Entretanto, regressa a versão absurda, mas por cá dominante, da doutrina da separação entre a política e a justiça. Relembra-se a imperativa necessidade de respeitar a presunção de inocência e pede-se serenidade até que tudo fique esclarecido pela "justiça".
Passados quinze dias de aplicação da receita, o primeiro embate, o mar amaina e tudo serena até ao próximo escândalo. As réplicas, quando as há, vêm já fracas.
E, no entanto, nada é mais perverso para uma comunidade que esta doutrina cretina e as práticas que medram à sua sombra. Esta concepção enviesada da submissão da responsabilidade política à responsabilidade criminal.
Os planos não se confundem. Os interesses subjacentes são distintos; têm uma área de sobreposição, mas não são os mesmos.
A responsabilidade política é mais exigente.
A presunção de inocência impede que qualquer cidadão seja considerado penalmente condenado sem um julgamento com todas as garantias processuais que a Constituição impõe.
Não impede, não pode impedir, que a mera existência de uma suspeita seja, em certos casos, suficiente para despoletar consequências políticas. Não obsta a que, em determinadas situações (a analisar caso a caso), os suspeitos titulares de cargos políticos (eleitos ou nomeados) se tenham de demitir.
O presidente de um instituto coordenador de investigações criminais internacionais suspeito de tentar perturbar um processo a seu cargo não pode continuar em funções.
O presidente do conselho de administração de uma sociedade dominada pelo Estado suspeito de viciar o sistema de contratação da empresa, motivado por interesses ilegítimos, não pode continuar em funções.
Não sendo assim, que confiança merecem os actos destes homens enquanto a nuvem pairar ?
Se, no fim da história, tudo se revelar uma injustiça, que sejam compensados. Se concluirmos que o sistema martiriza inocentes em série, que seja reformado.
O que não é admissível, o que é insustentável, é que a aplicação desta doutrina por estupidez de alguns e conveniência de outros, vá gerando uma elite de suspeitos. Cada um com o rabo preso à sua maneira. Todos eticamente condicionados. Todos interessados em ver a fasquia ética baixar.

Patriots

A frase é velha e normalmente citada na sua versão abreviada, o que lhe retira parte do sentido: "My country, right or wrong. In one sense I say so too. My country; and my country is the great American Republic. My country, right or wrong; if right, to be kept right; and if wrong, to be set right". Ou seja, patriotismo não é acriticismo, complacência ou salto de fé. Um país recente pode confundir-se com quem o governa. Mas isso já não acontece com um país antigo, em que as circunstâncias políticas (governos, leis, regimes) estão longe de esgotar aquilo que é mais constante (terra, povo, língua, a História passada). Gostar do país implica exigência. Querer correr de lá com os aldrabões, com os cleptomaníacos e com os governantes facínoras. Quem disse que a revolução não podia ser um acto patriótico? Como numa outra frase sobre patriotas e patriotismos de que também gosto muito: "To make us love our country, our country ought to be lovely". Nem que seja à bazucada.

Mundo interior

Viveu quando os navios portugueses avançavam pelo Atlântico, pelo Índico, e depois à volta do mundo. Foi contemporâneo de Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral ou Fernão Magalhães. Eles pertenciam ao mar aberto e Babur ao mundo interior que é a Ásia Central,  feita de estepes, desertos e montanhas.

[Alexandra Lucas Coelho, Caderno Afegão, Tinta da China]

Que títulos são estes? Achei que não podia deixar de valchekar esta enormidade.





















Mesmo assim, devil's advocate, uma pergunta para o Miguel Morgado? Será moralmente legítimo apreciar e defender o seu próprio país? Não tem de ser um país bom, decente, com futuro. Pode até ser uma miséria de país, cheio de aldrabões, cleptomaníacos e governantes sem escrúpulos. O que eu quero saber no fundo é se devemos, por qualquer obrigação moral, gostar do sítio onde nascemos.

Lomba au pays des obames (2)

Queria dizer que gosto muito muito deste texto. Então não é que me dão uma tampa aí de Lisboa, por antecipação, sem eu ter feito nada, mesmo nada, nenhum abuso, nenhuma inconveniência, nenhuma mijadela fora do sítio, nenhuma intenção presumível ou presumida, e acaba tudo num bloqueio facebook preventivo que é a sanção mais dura destes tempos modernos, enxota o vadio, fazes o que não deves, espreitas o que não podes. Fossem lavar um bom tanque as mulheres daí!

Meninos sem luz

Foi por um triz que não passei pelo Colégio Militar. Passaram dois irmãos meus algures nos anos 80 e não creio que guardem memórias afáveis. Um deles foi par délicatesse “convidado a sair” (o habitual eufemismo para expulso) devido a problemas disciplinares e depois de ser sujeito a indignidades que eu, apesar de muito pequeno, ainda recordo bem. Nessa altura, o Colégio Militar achou que o assunto se resolveria em silêncio e não fez nada para punir o aluno graduado que barbaramente tinha agredido e humilhado um rapaz de 14 anos. Os directores do Colégio não tiveram razão nenhuma no episódio. Apesar de mil e uma chantagens que não irei descrever aqui, os meus pais resignaram-se e retiraram os meus irmãos da escola. O aluno graduado autor das sevícias acabou por se suicidar anos mais tarde.

Um post não deve servir para expiações pessoais nem para ajustes de contas. Um caso é apenas um caso. Mas eu pus-me a ler este texto do João Gonçalves que sucintamente avisa "quem mete os filhos no Colégio sabe ao que vai", além de que o Colégio, como nenhuma outra escola, adocicado pelo politicamente correcto, deixou de "educar para a virtude" (qual virtude?). O João Gonçalves deixa-se levar por vezes pelo militarismo sul-americano com que gosta de brindar os seus leitores. Está convencido de que vive em Esparta.

Bem sei que o Colégio Militar ensinou muitas gerações em dois séculos; começou até por ser o lugar natural onde as elites se formavam; hoje creio que deixou de ser. Muita gente guarda recordações excelentes do tempo que lá passou. A associação dos antigos alunos do colégio envergonha todas as associações de antigos alunos que não existem noutras escolas e mesmo nas universidades. Há um código de disciplina e ética do Colégio Militar de que as instituições fortes precisam.

Mas - parece que de vez em quando há mesmo um mas a que não devemos fugir-, é uma completa aberração que, como sucede no Colégio Militar, qualquer aluno de 16 ou 17 anos acabe em graduado ou comandante de companhia, adquirindo poderes de direcção sobre os mais novos que ficam por isso permeáveis a toda a espécie de abusos. Penso que isto se mantém ainda, com os resultados que estão à vista. A História de abusos consecutivos praticados por alunos graduados, sem idade nem maturidade para as funções que lhes dão, mostra porque é uma ideia desastrosa. A coisa devia acabar quanto antes.

Nos últimos dias li nos jornais que muita gente protestou contra a publicação de notícias menos abonatórias para o Colégio Militar. Eu, pelo contrário, quero viver num país que não é indiferente a crimes como aquele que vitimou os dois alunos que decidiram processar o Colégio. O problema, de facto, não é o Colégio Militar. É uma cultura de impunidade que já dura há muitos anos. Prefiro Atenas a Esparta.

Lomba au pays des obames (1)

Esta senhora acaba de publicar um livro contra o pensamento positivo na América. A tese dela é a de que foi a tirania do pensamento positivo e a paranóia com a felicidade que conduziram os americanos ao desastre da crise económica, para além de outros sintomas menores de tristeza e auto-punição. Pessoalmente, sempre tive a mais profunda das desconfianças sobre o poder do pensamento positivo em qualquer parte do mundo, excluindo claro, como dizia o Lou Reed, the power of positive drinking.

Catálogos de maus costumes. Continuação.

Outros manuais de maus costumes, vícios, crueldade e do pior de natureza humana.

Hamlet: corrupção, incesto, imoralidade. Duas mortes.

Os Sofrimentos do Jovem Werther: suicídio, cobardia, egoísmo em doses imoderadas. Uma morte ficcional, seguido de milhares de suicidas reais em toda a Europa.

Madame Bovary: traição, adultério, mentira. Três mortes.

Ana Karenina: hipocrisia, fé, infidelidade, luxúria, inveja. Uma morte.

Saramago não insultou a religião. Nada disso. Pior: insultou a literatura.

Um livro para todas as estações

“A Bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana”.

Um pouco de luz, mesmo que fraquinha

Num momento em que há sólidas razões para desconfiar dos reguladores, dos órgãos de investigação policial, dos jornais e televisões, seria saudável que o Parlamento contribuísse para iluminar alguns negócios bizarros e intrigantes aqui do pedaço. Logo à cabeça (mas longe de ser filho único) destaca-se o cancelamento abrupto e inoportuno (ou muito oportuno) do Jornal Nacional e a subsequente transacção de uma participação relevante na Media Capital e respectivo financiamento.
Neste momento da história da nossa querida República o único mecanismo ainda respeitável para nos ajudar a perceber um pouco mais do que se passou seria uma comissão de inquérito da Assembleia da República com audiências públicas.
As comissões parlamentares gozam de poderes de investigação próprios das autoridades judiciais e podiam virar muita pedra à procura de lacraus. Com a enorme vantagem obrigar os media a divulgar o que lá se passasse, contra as várias forças de inércia que os impedem de tomar a iniciativa sem empurrões fortes. A verdade é que as últimas experiências não foram desanimadoras. Por mais que o jogo partidário condicione a sua acção, os resultados da comissão de inquérito seriam certamente menos insalubres do que a procissão de horrores sobre o funcionamento dos jornais e das investigações do ministério público que vão desfilando perante nós ao ritmo de fugas de informação anónimas e roubos de emails por obra sabe-se lá de quem.

Encomendas foram muitas

Longe da Pátria, leio o que escreveu o Provedor do Público este domingo ainda sobre o caso das escutas. Desta vez é o DN que sai mal-tratado na crónica de Joaquim Vieira. Espero que o citem. Eu bem gostava de o ter citado quando há quase um mês escrevi este texto, aqui e ali precisamente igual ao do Provedor.

Eu já lo tengo


Queirozologia

Aqueles que criticam Queiroz, pensem bem na Espanha: dez partidas, dez vitórias, uma grande maçada. Com o professor não é assim. Há mais emoção. Mais thriller. Desde o segundo jogo que os restantes passaram a ser de vida ou de morte. E quem não prefere jogos de vida ou morte a treinos para "cumprir calendário" em que se "ensaiam experiências técnico-tácticas". Sobretudo quando nem aqueles conseguimos ganhar e acabamos a fazer contas e a depender de terceiros. Não há nada mais excitante na bola do que depender de terceiros. Assistir com genuíno interesse ao Albânia-Suécia - um objecto televiso para o qual, à partida, o cidadão pagador de impostos se estaria a borrifar. Pena foi que o jogo com Malta não tivesse ficado um a zero. A nervoseira que seriam aqueles minutos finais de cada vez que os malteses passassem o meio-campo. E o alívio, de cada vez que a bola fosse despejada para a bancada. Felizmente a coisa ainda não acabou e vêm aí mais dois joguitos. Mais vida e morte, ou morte e ressurreição. Perder o primeiro por dois ou três para ter que recuperar de uma complicada desvantagem. Não há nada mais estimulante do que ter que recuperar de uma complicada desvantagem. O Queiroz é o nosso mister. Não me lixem.

Essa modalidade de turismo até tem um nome

"Há algum português que vá ao Brasil e não goze ?"
(Miguel Sousa Tavares, no DN de hoje, em defesa de Maitê Proença)

Momento RTC

Porque qualquer comerciante sabe que não se ama ou estima um conservador sem a ajuda de químicos, a edição deste mês da Atlantic publica este oportuno anúncio:
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Nobel da literatura 2009

"Ela trazia um casaco de Inverno de pêlo de camelo e meias altas de lã e a cobrir-lhe o cabelo ruivo escuro um barrete justo de lã branca com uma fofa bola de malha vermelha no topo. Vinda directamente da rua, com as mãos do rosto vermelhas e o nariz a pingar ligeiramente, parecia a última rapariga do mundo capaz de fazer um broche a alguém".

Philip Roth, Indignação, trad. de Francisco Agarez

Vejo agora que o Bruno postou o mesmo excerto. Friends, romans, countrymen. A propósito, também quero dizer que, opinião pessoal, este é o melhor romance do Philip Roth desde o Human Stain

Suction with Eduardo

E eu gostava de subscrever, repetir e imitar o que o Eduardo escreveu aqui a propósito da carta que o Andrew Sullivan escreveu na última edição da Atlantic. E não consta que o Eduardo seja membro honorário da direita gay.

Preemptive peace

A única explicação para este Nobel dado ao Obama, é tratar-se de uma acção de paz preventiva promovida pela bem intencionada academia (vamos cá dar-lhe o prémio e a fama antes que os gajos se lembrem de invadir mais um país). Há porém um pormenor de que os noruegueses se esqueceram: é que Obama está em guerra. E não consta que lhe vá pôr termo antes da cerimónia.

Hey Mr. Sullivan man, sing a song for me

A seguir ao 11/9, Bush institui uma espécie de estado de emergência (Patriotic Act) em que várias liberdades e muitos direitos foram suspensos ou limitados em nome da war on terror. Até aqui, compreende-se. Sujeitos às mesmas circunstâncias, com um mínimo de bom senso e algum realismo, muitos teriam feito igual. O problema é que este estado de excepção foi sendo prolongado por demasiado tempo até se tornar regra. E, pior que isso – é aqui que a linha de fronteira foi violada – coisas que mesmo sob um estado de excepção devem ser absolutamente excepcionais (ou inexistentes), passaram também a ser regra.

Vale a pena ler a longa carta que Andrew Sullivan dirige ao presidente Bush (publicada na última Atlantic), onde lhe pede que reconheça o maior erro da sua presidência: a autorização, mais ou menos informada, provavelmente com as melhores intenções, do uso sistemático da tortura como forma de obtenção de informações. Que reconheça, que assuma total responsabilidade e que se desculpe perante os americanos.

É um texto exemplar do ponto de vista argumentativo. Mas é sobretudo um texto justo de um homem bom. E, nessa medida, muito mais duro do que qualquer hipotética sentença de um tribunal penal internacional.

O que há num artigo definido ?

A bíblica diferença entre «fazer cidade» e «fazer a cidade».

E ainda falta uma semana

Só há uma coisa mais irritante do que a expressão "fazer cidade": é a expressão "fazer cidade" saída da boca de Helena Roseta. Não haverá por aí outro município qualquer a precisar de ser feito que nos livre desta praga.

Carl Schmitt em Belém?

No seu ensaio O Conceito do Político (Der Begriff des Politischen, 1932), Carl Schmitt defendeu a tese de que a política assenta no antagonismo permanente entre amigo e inimigo. O "amigo" é aquele que está disposto a combater por nós e pelos nossos valores; o "inimigo", aquele contra quem combatemos em conjunto e contra o qual nos definimos em conjunto; e a política algo que não existe sem estas duas realidades.


(publicado no i)