É isto o "normal funcionamento das instituições democráticas"?

É de leitura obrigatória o texto de Paulo Pinto de Albuquerque no DN de ontem, o especialista em processo penal que pôs José Sócrates muito indisposto e a estrebuchar contra a RTP, só porque a televisão pública o convidou para um debate sobre as escutas. Tal como Pinto de Albuquerque, também espero que não esteja por aí em marcha a mais descarada operação de branqueamento político a que alguma vez se assistiu na política portuguesa. Já seria grave se a coisa metesse só políticos a protegerem outros políticos. Isso é o costume. Mas ver o chefe máximo do Ministério Público, Pinto Monteiro, vedar-nos o conhecimento dos factos que foram imputados ao primeiro-ministro, factos que o próprio considerou não constituírem indícios de crimes (mas que podem e devem ser apreciados no terreno político), parece-me demasiado grave e irresponsável.

O texto de Pinto de Albuquerque:

O procurador-geral da República decidiu não divulgar os seus despachos proferidos no tocante às escutas entre o primeiro-ministro e um arguido do processo "Face Oculta". A manutenção deste mistério em torno dos factos criminosos imputados ao primeiro-ministro é juridicamente insustentável e socialmente inaceitável. Em poucas palavras, a fundamentação da decisão do procurador-geral não responde aos argumentos expostos pelos "contínuos pedidos" das mais variadas áreas da sociedade civil portuguesa no sentido de divulgação dos factos criminosos imputados ao primeiro-ministro.
Com efeito, o procurador-geral não esclarece a natureza jurídica do "expediente" relativo às escutas e se esse expediente está ou não em segredo de justiça. Como não esclarece se há ofendidos na notícia de crime e se eles foram notificados para se pronunciarem sobre a mesma, nos termos previstos na lei. Mas sobretudo não esclarece quais foram os factos criminosos imputados pelo juiz de instrução e pelo procurador coordenador ao primeiro-ministro de Portugal.
Este mistério não tem qualquer explicação plausível numa democracia. Em qualquer país democrático os factos desta natureza são do conhecimento público. E em Portugal não deve ser diferente. Porque os factos que indiciam a violação das liberdades fundamentais dos portugueses interessam aos portugueses. Quando o Ministério Público revelou publicamente o teor das escutas de conversas em que o governador do Estado de Illinois se propunha vender o cargo do senador Obama, todos os americanos, melhor, todo o mundo, incluindo os portugueses, puderam ouvir as escutas do governador do Estado de Illinois. E por que razão foram estas escutas reveladas pelo ministério público? Porque eram do "interesse público", segundo o procurador-geral do Estado de Illinois. Infelizmente os portugueses têm mais direito a conhecer a idoneidade dos políticos de fora do que dos políticos caseiros.
O procurador-geral afirma que não divulga as referidas escutas nem os seus despachos relativos às ditas escutas e ao destino da notícia de crime, porque o presidente do Supremo Tribunal de Justiça mandou destruir as escutas em causa e esta decisão transitou. E transitou porque o procurador- -geral não quis recorrer. No entender do Procurador Geral, a divulgação dos seus despachos violaria a ordem de destruição do presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
É certo que as decisões transitadas do presidente do Supremo Tribunal de Justiça têm de ser acatadas. Mas o seu acatamento não implica a manutenção do mistério em torno dos factos criminosos imputados ao primeiro-ministro. É possível informar os portugueses sobre os factos imputados pelos magistrados de Aveiro, sem transcrever escutas. O procurador-geral tem de explicar ao povo português quais foram os factos imputados ao primeiro-ministro e quais as razões jurídicas para não ter sido aberto inquérito. Aliás, se os despachos do presidente do Supremo Tribunal de Justiça podem ser disponibilizados a quem revele "interesse legítimo" no seu conhecimento, como por exemplo os jornalistas ao abrigo do artigo 8.º do seu estatuto, só falta dar o passo seguinte. Isto é, revelar toda a verdade ao Povo português.

E vale a pena ler ainda este excelente post na Porta da Loja: A nossa legalidade democrática (via Blasfémias) que demonstra com enorme clareza como é que o Procurador-Geral da República e o Presidente do STJ, agindo contra a lei processual penal e o princípio do Estado de direito, protegeram o primeiro-ministro do incómodo de ter de responder publicamente por factos de que ainda não temos conhecimento mas que sabemos serem "intoleráveis".

Que valor jurídico tem o despacho/ sentença, do juiz de instrução Noronha Nascimento? É nulo, como diz Paulo Pinto de Albuquerque e com uma nulidade que se tornou "sanada" por não ter havido recurso da mesma, pela parte que o deveria fazer, ou seja o MP? Ou será meramente inexistente porque derivada de uma incompetência absoluta de um juiz de instrução despachar num expediente que não foi autuado devidamente e por isso, subtraído às regras elementares dos processos de inquérito? Mais: se o PGR arquivou liminarmente as certidões com um despacho ao abrigo da legislação processual penal, como agora admitiu para negar a consulta ao "expediente administrativo", como poderá invocar regras de processo penal nesse expediente?

É que ao contrário do que refere um comentador nestas caixas, no postal que antecede, não se trata, no caso, de um despacho exarado pelo PGR e pelo pSTJ, no âmbito do inquérito de Aveiro. Esse ficou lá, à espera de quem o despacha com competência para tal. O que se trata, neste caso, é de um extracto, certificado, de parte desse inquérito, para instauração de outro processo penal de inquérito, contra o PM. Por suspeitas de comportamento criminal reveladas no âmbito de um conhecimento fortuito, numa escuta telefónica em que o mesmo não era visado mas acabou por ser apanhado como "interveniente".

A lógica juridico-argumentativa dos que defendem que mesmo nesse caso, a escuta só será válida se autorizada pelo pSTJ, não tem argumentos suficientes para contrariar o mero senso comum ( por exemplo, parar logo a escuta a partir do momento em que se tenha conhecimento que foi o PM a ser inteceptado), porque tal conduz ao absurdo de nada poder ser ouvido previamente pelo MP e portanto até pelo próprio PGR. Assim, permanecerá válido o entendimento de Costa Andrade que defende a validade da escuta nesses termos: como indiciária de eventual crime do catálogo que permite a escuta, mesmo a um PM. E o professor de Coimbra até disso mais, apelando ao maravilhoso: nem no céu poderá alguém dizer que a escuta é inválida! Mesmo sabendo a alta estima em que se revê o presidente do STJ , é capaz de ser um pouco de mais pretender que a sua voz já chegou a tão elevadas alturas...

Perante estes argumentos jurídicos, obrigatoriamente cognoscíveis pelo PGR e pelo presidente do STJ ( por si ou por assessores melhor preparados tecnicamente) a decisão deveria ter sido outra: a instauração de um inquérito na secção criminal do STJ e o despacho pelo presidente do STj na qualidade de juiz de instrução.

Assim não aconteceu e a suspeita que não deixa de ter uma gravidade inaudita é a de que ambos quiseram subtrair o primeiro-ministro, em vésperas de eleição legislativa, a uma ordália: a de ser questionado publicamente por factos que aparentemente serão intoleráveis em democracia. A actuação do presidente do STJ e do PGR, ao esconder objectivamente do público uma situação destas, agindo de modo invulgar, anormal num procedimento legal, aparentemente contra regras processuais que seriam banais ( por exemplo, não aconteceu tal na escuta também ela fortuita, a um juiz desembargador cuja certidão foi remetida à secção criminal do STJ. Ora tal caso em tudo é idêntico ao do PM porque um desembargador também só poderá ser escutado com controlo de um juiz do STJ) num caso com esta dimensão e relevo, só pode ter uma leitura.