Peço desculpa pelo nepotismo

Mas o último post da década vai para os meus filhos


Shelter me from the powder and the finger
Cover me with the thought that pulled the trigger

E para a Helena.

Listinhas

Alguns filmes dos anos zero zero (à atenção do JPC)

The Royal Tenenbaums, Wes Anderson (2001)
O mais próximo que se pode chegar da infância a partir da idade adulta.

Code Inconnu, Michael Haneke (2000)
Não sei se é o melhor Haneke da década (talvez prefira Caché), mas é o melhor exemplo do seu cinema, feito de histórias de violência, da dialéctica contenção/explosão e de um afastamento emocional em relação às personagens. Michael Haneke é um mestre da montagem. E sabe como ninguém que a força da sua mensagem está na aparente inexistência de qualquer mensagem.

Ghost World, Terry Zwigoff (2001)
Um filme sobre as manias, as idiossincrasias, as pequenas e fúteis obsessões. As minhas, bem entendido. E com diálogos como este: R.: This is so bad it's almost good. E.: This is so bad it's gone past good and back to bad again.

Far from Heaven, Todd Haynes (2002)
O Douglas Sirk possível com uma actriz muito mais bonita que as dos filmes de Douglas Sirk.

L'Adversaire, Nicole Garcia (2002)
Baseado num romance de Emmanuel Carrère (também autor da biografia de Philip K. Dick Je suis vivant et vous êtes morts), é a história de um falhado. Um homem que não passa de uma fraude e que nos deixa  a angustiante hipótese de  não passarmos também nós de uma fraude.

The Squid and the Whale, Noah Baumbach (2005)
O mais cruel filme de época, pois a época são os (nossos) anos 80. We're getting old, babe.

Before the Devil Knows You're Dead, Sidney Lumet (2007)
Com L'Adversaire, um dos filmes mais tristes da década. As cenas de Philip Seymour Hoffman no apartamento do dealer são a desolação 24 vezes por segundo.

Kill Bill, Quentin Tarantino (2003/4)
O épico da era pós-videotape. Está em representação de todos os filmes bons, maus ou péssimos, de todos géneros e autores, que me entretiveram ao longo dos últimos dez anos. E porque Tarantino tinha que estar.

In the Mood for Love, Wong Kar-Wai (2000)
Uma enorme nostalgia por um mundo onde nunca se viveu. Estética, cortesia e Nat King Cole.

Mulholland Drive, David Lynch (2001)
Um filme para ver e rever várias vezes. Mas que existe sobretudo quando estamos longe do ecrã. A uma grande distância, o que mais gostei nos anos 00.

Listinhas

Discos de que mais gostei nos anos 2000-2009

Os claros...
Where You Go I Go Too, Hans-Peter Lindstrøm (2008)
LCD Soundsystem/Sound of Silver, LCD Soundsystem (2005 e 2007)
The Sunset Tree, The Mountain Goats (2005)
Vampire Weekend, Vampire Weekend (2008)
Funeral, Arcade Fire (2004)
Sung Tongs, Animal Collective (2004)
DJ Kicks, Erlend Øye (2004)
Late Registration, Kanye West (2005)
The Civil War, Matmos (2003)

... e os escuros
Space, Rafael Toral (2006)
Wonderful Rainbow, Lightning Bolt (2003)
The Sophtware Slump, Grandaddy (2001)
Salt Marie Celeste, Nurse with Wound (2003)
The Great Santa Barbara Oil Slick, John Fahey (2004)
Superwolf , Matt Sweeney & Bonnie Prince Billy (2005)
Tanglewood Numbers, Silver Jews (2005)
Sea Change, Beck (2002)
Let's Get Out of This Country, Camera Obscura (2006)

Listinhas

Discalhada de 2009

Camera Obscura, My Maudlin Career
Bill Callahan, Sometimes I Wish We Were An Eagle
Sunn O))), Monoliths & Dimensions
Yo La Tengo, Popular Songs
God Save the Girl, God Save the Girl
Richard Hawley, Truelove's Gutter
Prins Thomas, Live At Robert Johnson
Fuck Buttons, Surf Solar
The Mountain Goats, The Life Of The World To Come
Neil Young, The Archives Vol. 1 1963–1972

Outra coisa

Que as há, há

O tema já cansa. Mas este artigo do meu estimado Ferreira Fernandes quase me escapou. O Ferreira Fernandes sabe o que penso das crónicas dele. Na crónica (sublinho: crónica) escrita em português-português existem três nomes que estão lá em cima: Miguel Esteves Cardoso, Vasco Pulido Valente e Ferreira Fernandes. Com um particularidade: o MEC é o mais português dos ingleses; VPV é o mais inglês dos portugueses e o Ferreira Fernandes é o único que consegue ser brasileiro, angolano e português tudo em dose certa só possível a quem tem o percurso que ele tem. Infelizmente para mim que sou seu leitor e admirador, há um Ferreira Fernandes que escreve crónicas como esta e esta (magníficas no estilo, na contenção e naquela generosidade com que ele se mistura com o mundo) e outro Ferreira Fernandes que usa o seu enorme talento para baralhar um debate importante e para dar cobertura a causas que o não merecem.

Nem o João Miguel Tavares, nem ninguém, que eu tivesse notado, sugeriu alguma vez que Portugal se parece com a Argélia. De facto, não é preciso ser muito corajoso para botar "opinião pública" por cá. Coragem é sobretudo coragem física e moral (a coragem intelectual também existe mas em muitos casos chamar-lhe coragem é uma figura de estilo). De qualquer maneira, Ferreira Fernandes tem obrigação de saber que o "medo" (não de perder a vida mas de perder o emprego, de sofrer pertubações na sua vida profissional, de ser admoestado, de apanhar com uma inspecção conveniente, de ser ostracizado de muitas maneiras), as "pressões" directas ou indirectas, os "silêncios forçados" não acontecem apenas nas ditaduras. As democracias recentes, pequenas e vulneráveis a inúmeras formas de captura do Estado como a nossa, também são feitas disso. Bem sei que Ferreira Fernandes é adepto dos métodos de força do Senhor Engenheiro. Mas não tem razão para nos tratar como gente quixotesca com o dedo espetado contra o que não existe. Vemos, ouvimos e lemos. Portugal é minúsculo, são quatro ou cinco que mandam, mais vinte que fazem o serviço desses quatro ou cinco e nós todos, o resto, não passamos de peões em esforço, uns mais atentos do que outros. O JMT, de quem sou amigo, tem sido dos mais atentos. Palmas para ele.

Outro ideólogo do crime

Uma recente escola de pensamento defende a moderação, espontânea ou coerciva, do jornalismo em geral e das colunas de opinião em particular. A tese é partilhada por altas figuras da magistratura, políticos conhecidos, políticos ou assessores que preferem o anonimato e, curiosamente ou não, alguns jornalistas e colunistas, entre eles Pedro Marques Lopes, aqui no DN.
Enquanto membro da última classe, acho óptimo que se vigiem os excessos dos meus colegas e de mim próprio. Embora nos paguem a opinião, esta resulta muito mais louvável e construtiva se se abstiver de injúrias e levar em conta que os eventuais deslizes serão severamente castigados, mediante multa, prisão efectiva ou degredo. De calúnias e insinuações maldosas está o país farto, ou, nas imortais palavras de um fugaz ministro do anterior Governo, liberdade não é licenciosidade.
Claro que os tribunais comuns, useiros em desculpar o pagode opinativo, não servem para impor o devido respeito. Por isso uma personalidade insuspeita como Noronha do Nascimento, presidente do Supremo Tribunal de Justiça, propôs que sejam os políticos a julgar jornalistas e afins, o que de resto já sucede em todas as nações desenvolvidas, de Cuba à Coreia do Norte. É urgente que, em Portugal, o ofício de colunista deixe de ser confundido com insolentes que dizem o que lhes vai nas cabeças. Dizermos o que vai nas cabeças de outros, principalmente se os outros forem governantes ou avençados, é um enorme passo para a dignidade da profissão.
E um pequeno passo para um colunista. No fundo, a mudança que se reclama não impedirá ninguém de continuar a escrever as maiores barbaridades sobre banqueiros em desgraça, autarcas avulsos, líderes da oposição, jogadores da bola, columbófilos e até o presidente da República: insultar tais criaturas não suscita a indignação de vivalma, incluindo do dr. Noronha do Nascimento. Tudo bem espremido, os únicos "julgamentos de carácter" intoleráveis são os que visam a sagrada figura do actual primeiro-ministro. Bastará não produzir uma só linha menos simpática para com o eng. Sócrates e qualquer potencial candidato a correctivos será imediatamente elevado a farol da seriedade e da responsabilidade. Obviamente, não custa nada. Excepto a vergonha, aliás um tique em declínio.
Alberto Gonçalves no DN

É isto o "normal funcionamento das instituições democráticas"?

É de leitura obrigatória o texto de Paulo Pinto de Albuquerque no DN de ontem, o especialista em processo penal que pôs José Sócrates muito indisposto e a estrebuchar contra a RTP, só porque a televisão pública o convidou para um debate sobre as escutas. Tal como Pinto de Albuquerque, também espero que não esteja por aí em marcha a mais descarada operação de branqueamento político a que alguma vez se assistiu na política portuguesa. Já seria grave se a coisa metesse só políticos a protegerem outros políticos. Isso é o costume. Mas ver o chefe máximo do Ministério Público, Pinto Monteiro, vedar-nos o conhecimento dos factos que foram imputados ao primeiro-ministro, factos que o próprio considerou não constituírem indícios de crimes (mas que podem e devem ser apreciados no terreno político), parece-me demasiado grave e irresponsável.

O texto de Pinto de Albuquerque:

O procurador-geral da República decidiu não divulgar os seus despachos proferidos no tocante às escutas entre o primeiro-ministro e um arguido do processo "Face Oculta". A manutenção deste mistério em torno dos factos criminosos imputados ao primeiro-ministro é juridicamente insustentável e socialmente inaceitável. Em poucas palavras, a fundamentação da decisão do procurador-geral não responde aos argumentos expostos pelos "contínuos pedidos" das mais variadas áreas da sociedade civil portuguesa no sentido de divulgação dos factos criminosos imputados ao primeiro-ministro.
Com efeito, o procurador-geral não esclarece a natureza jurídica do "expediente" relativo às escutas e se esse expediente está ou não em segredo de justiça. Como não esclarece se há ofendidos na notícia de crime e se eles foram notificados para se pronunciarem sobre a mesma, nos termos previstos na lei. Mas sobretudo não esclarece quais foram os factos criminosos imputados pelo juiz de instrução e pelo procurador coordenador ao primeiro-ministro de Portugal.
Este mistério não tem qualquer explicação plausível numa democracia. Em qualquer país democrático os factos desta natureza são do conhecimento público. E em Portugal não deve ser diferente. Porque os factos que indiciam a violação das liberdades fundamentais dos portugueses interessam aos portugueses. Quando o Ministério Público revelou publicamente o teor das escutas de conversas em que o governador do Estado de Illinois se propunha vender o cargo do senador Obama, todos os americanos, melhor, todo o mundo, incluindo os portugueses, puderam ouvir as escutas do governador do Estado de Illinois. E por que razão foram estas escutas reveladas pelo ministério público? Porque eram do "interesse público", segundo o procurador-geral do Estado de Illinois. Infelizmente os portugueses têm mais direito a conhecer a idoneidade dos políticos de fora do que dos políticos caseiros.
O procurador-geral afirma que não divulga as referidas escutas nem os seus despachos relativos às ditas escutas e ao destino da notícia de crime, porque o presidente do Supremo Tribunal de Justiça mandou destruir as escutas em causa e esta decisão transitou. E transitou porque o procurador- -geral não quis recorrer. No entender do Procurador Geral, a divulgação dos seus despachos violaria a ordem de destruição do presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
É certo que as decisões transitadas do presidente do Supremo Tribunal de Justiça têm de ser acatadas. Mas o seu acatamento não implica a manutenção do mistério em torno dos factos criminosos imputados ao primeiro-ministro. É possível informar os portugueses sobre os factos imputados pelos magistrados de Aveiro, sem transcrever escutas. O procurador-geral tem de explicar ao povo português quais foram os factos imputados ao primeiro-ministro e quais as razões jurídicas para não ter sido aberto inquérito. Aliás, se os despachos do presidente do Supremo Tribunal de Justiça podem ser disponibilizados a quem revele "interesse legítimo" no seu conhecimento, como por exemplo os jornalistas ao abrigo do artigo 8.º do seu estatuto, só falta dar o passo seguinte. Isto é, revelar toda a verdade ao Povo português.

E vale a pena ler ainda este excelente post na Porta da Loja: A nossa legalidade democrática (via Blasfémias) que demonstra com enorme clareza como é que o Procurador-Geral da República e o Presidente do STJ, agindo contra a lei processual penal e o princípio do Estado de direito, protegeram o primeiro-ministro do incómodo de ter de responder publicamente por factos de que ainda não temos conhecimento mas que sabemos serem "intoleráveis".

Que valor jurídico tem o despacho/ sentença, do juiz de instrução Noronha Nascimento? É nulo, como diz Paulo Pinto de Albuquerque e com uma nulidade que se tornou "sanada" por não ter havido recurso da mesma, pela parte que o deveria fazer, ou seja o MP? Ou será meramente inexistente porque derivada de uma incompetência absoluta de um juiz de instrução despachar num expediente que não foi autuado devidamente e por isso, subtraído às regras elementares dos processos de inquérito? Mais: se o PGR arquivou liminarmente as certidões com um despacho ao abrigo da legislação processual penal, como agora admitiu para negar a consulta ao "expediente administrativo", como poderá invocar regras de processo penal nesse expediente?

É que ao contrário do que refere um comentador nestas caixas, no postal que antecede, não se trata, no caso, de um despacho exarado pelo PGR e pelo pSTJ, no âmbito do inquérito de Aveiro. Esse ficou lá, à espera de quem o despacha com competência para tal. O que se trata, neste caso, é de um extracto, certificado, de parte desse inquérito, para instauração de outro processo penal de inquérito, contra o PM. Por suspeitas de comportamento criminal reveladas no âmbito de um conhecimento fortuito, numa escuta telefónica em que o mesmo não era visado mas acabou por ser apanhado como "interveniente".

A lógica juridico-argumentativa dos que defendem que mesmo nesse caso, a escuta só será válida se autorizada pelo pSTJ, não tem argumentos suficientes para contrariar o mero senso comum ( por exemplo, parar logo a escuta a partir do momento em que se tenha conhecimento que foi o PM a ser inteceptado), porque tal conduz ao absurdo de nada poder ser ouvido previamente pelo MP e portanto até pelo próprio PGR. Assim, permanecerá válido o entendimento de Costa Andrade que defende a validade da escuta nesses termos: como indiciária de eventual crime do catálogo que permite a escuta, mesmo a um PM. E o professor de Coimbra até disso mais, apelando ao maravilhoso: nem no céu poderá alguém dizer que a escuta é inválida! Mesmo sabendo a alta estima em que se revê o presidente do STJ , é capaz de ser um pouco de mais pretender que a sua voz já chegou a tão elevadas alturas...

Perante estes argumentos jurídicos, obrigatoriamente cognoscíveis pelo PGR e pelo presidente do STJ ( por si ou por assessores melhor preparados tecnicamente) a decisão deveria ter sido outra: a instauração de um inquérito na secção criminal do STJ e o despacho pelo presidente do STj na qualidade de juiz de instrução.

Assim não aconteceu e a suspeita que não deixa de ter uma gravidade inaudita é a de que ambos quiseram subtrair o primeiro-ministro, em vésperas de eleição legislativa, a uma ordália: a de ser questionado publicamente por factos que aparentemente serão intoleráveis em democracia. A actuação do presidente do STJ e do PGR, ao esconder objectivamente do público uma situação destas, agindo de modo invulgar, anormal num procedimento legal, aparentemente contra regras processuais que seriam banais ( por exemplo, não aconteceu tal na escuta também ela fortuita, a um juiz desembargador cuja certidão foi remetida à secção criminal do STJ. Ora tal caso em tudo é idêntico ao do PM porque um desembargador também só poderá ser escutado com controlo de um juiz do STJ) num caso com esta dimensão e relevo, só pode ter uma leitura.















Bunk: Them Greeks sure have some weird-ass names.

McNulty: Hey, don't knock the Greeks. They invented civilization.

Bunk: Yeah, and ass-fucking, too.

O coro dos nostálgicos

Sente-se uma nostalgia crescente em Portugal. A aspiração pelo regresso a tempos que alguns julgariam irreversivelmente ultrapassados; os tempos do cuidadinho com o que dizes.
É curiosa essa aspiração e ainda mais estranha a coligação formada para a suportar.

O comentário dos João Magalhães no Câmara Corporativa, que acusam o Público de manipulação a propósito desta notícia é só mais um pequeno episódio do fenómeno. A notícia do Público informa-nos que o «Tribunal da Relação de Lisboa decidiu não levar a julgamento o jornalista Estêvão Gago da Câmara, acusado pelo Ministério Público (MP) de atentar contra a honra e consideração de Ricardo Rodrigues, vice-presidente da bancada parlamentar do PS. A decisão confirmou sentença anterior do Tribunal de Ponta Delgada. A causa do descontentamento do vice-presidente da bancada socialista na AR foi a publicação de um artigo de opinião no jornal Açoriano Oriental, a 5 de Janeiro de 2005, em que Estevão Gago da Câmara associava Ricardo Rodrigues a um 'gang internacional', na sequência de um processo de burla qualificada e falsificação de documentos.

Antes — só para referir alguns momentos recentes — tivemos as declarações do Presidente do STJ, que gostaria de ver os jornalistas julgados por «órgão com poderes disciplinares efectivos, composto parietariamente por representantes das próprias classes profissionais e da estrutura política do Estado, de modo a obviar às sua partidarização ou ao seu corporativismo» e a fabulosa crónica de Pedro Marques Lopes que, incomodado com algumas opiniões inconvenientes — sobre José Sócrates, afirma JMT no DN, mas acredito que também sobre Pedro Passos Coelho — veio apresentar acusação contra incertos (que insiste em não identificar) e apelar ao zelo de quem opina.
Há vários aspectos dignos de nota nesta conjugação de eventos. Desde logo, anotemos que o Presidente do STJ não se satisfaz com a existência de tribunais, da ERC e de uma Comissão de Carteira Profissional de Jornalista. Quer mais. Quer mão mais dura e parcial. Quer os políticos a controlar o que se escreve.
Anotemos também que PML parece considerar insuficientes ou demasiado brandas as leis penais que temos, porque aparentemente permitiram a instalação de um far-west na opinião mediática. Não sabemos mais, porque PML não concretiza, apesar de instado a fazê-lo aqui e aqui.

Ou seja (e repito), creio não haver ainda razão para grande alarme, mas recomenda-se vigilância e cautela. Num momento histórico em que surgem claros indícios de interferência do governo na independência da comunicação social, há um coro cada vez mais forte a convocar o regresso de um admirável mundo velho.

JMT também enfia "O barrete de Pedro Marques Lopes"

Há dez dias, Pedro Marques Lopes escreveu um texto no DN intitulado "Mártires da opinião" onde se atirava àqueles que nos jornais, rádios e televisões advogam para si uma espécie de "princípio da inimputabilidade" - gente, no seu entender, que se permite dizer tudo o que vem às suas desmioladas cabeças e "acusar qualquer cidadão dos mais terríveis e sórdidos crimes" sem se preocupar com a consequência das palavras ou em fazer prova das suas afirmações.
O artigo estava elaborado naquele tom toca e foge que Marques Lopes parece apreciar, e que consiste em não apontar o dedo directamente a ninguém mas deixar pistas suficientes para os visados poderem enfiar o clássico "barrete". Pedro Lomba enfiou (seria uma extraordinária coincidência que a frase "E ai do director que resolva prescindir dos meus serviços. De certeza absoluta que foi por eu ter ameaçado os poderes estabelecidos" fosse dirigida a outra pessoa). E eu também enfio, porque sempre é preferível enfiarmos os nossos próprios barretes do que andar a enfiá-los aos outros. Se não se importam, fico com aquela parte em que Marques Lopes fala do trafulha que insulta para sair da "obscuridade" e fazer crescer a "cotação no mercado dos media". É um dos meus excertos favoritos.
Eu poderia desaconselhar o seriíssimo colunista de usar a estratégia da enguia (aqui uma descargazinha eléctrica, ali uma escapadela por entre as mãos), mas Pedro Marques Lopes não vai com certeza mudar a sua natureza, nem eu pretendo modificar a minha. Aliás, há gente que muito prezo - como Fernanda Câncio - que já saiu em sua defesa e que acha sinceramente que anda por aí muito excesso jornalístico e opinativo. Só que eu, excessivo como sou, olho à minha volta e aquilo que continuo a ver - será dos óculos? - é uma sociedade amedrontada. A sociedade do velho "respeitinho", do "olha que vais arranjar chatices", moldada ao longo de décadas de ditadura.
Por baixo de toda aquela prosa, Marques Lopes está apenas a dizer uma coisa: José Sócrates tem sido violenta e injustamente atacado por um bando de colunistas desvairados. Não quero estar a voltar à vaca fria nem a sublinhar o quanto o primeiro-ministro - e as mais altas instâncias da Justiça, já agora - tem falhado nos seus deveres de justificação e transparência. Mas alguém olhar para este país, onde um funcionário público para falar com um jornalista precisa da autorização do chefe, onde um telejornal é silenciado, onde a parede que deveria separar a magistratura do Governo tem mais buracos do que um queijo suíço, e dizer "hum, há por aí uns tipos com umas opiniões muito irresponsáveis", não é só uma parvoíce. É o que explica em boa parte a mediocridade política e moral em que vivemos.

Nota sobre o dia 20 de Dezembro de 2009


Quando a minha filha nasceu, lembrei-me de David Bowie e do propulsor da nave espacial do Major Tom. Hoje, veio-me à cabeça uma outra história: em Se isto é um homem, Primo Levi descreve o cuidado das mães em alimentar os seus filhos e lavar-lhes a roupa durante a viagem de comboio para Auschwitz. Mães que, a caminho de um futuro sem um futuro, não hesitavam em cuidar dos filhos como se toda uma vida existisse à sua frente. E que me põem perante uma das mais importantes questões ontológicas: por que razão hei-de de mudar a fralda ao meu filho se daqui a duas horas o mundo acabar? Por nenhuma, responde-me a razão. No entanto, mudo-a. É assim a paternidade. Aproxima-nos e distingue-nos dos animais. De um lado, o instinto bestial; do outro, a capacidade de racionalizar esse instinto e perceber a imensa alegria que é poder agir em conformidade.
Excelente

A desumanidade de Bastos

Costumo ler o Baptista Bastos no DN. Não gosto dos escritos de Baptista Bastos. Não gosto das ideias e menos ainda daquela prosa barroca com o tal castor debaixo do braço. Mas é precisamente esse desamor que me leva até Bastos. O que procuro nas suas crónicas é esse prazer misterioso e paradoxal da irritação: de uma certa modalidade de irritação.
Ontem, quarta, fui consultar o Bastos. Com enorme surpresa, encontro em Bastos um elogio justo e oportuno a um homem bom. O Bastos até parece aceitar uma ideia que julgava imBastável: a natureza religiosa do ateísmo.
Confuso, tive de concordar. Mas, sem me conseguir irritar, persisti. Acreditei em Bastos e Bastos não falhou. Com o pano a cair, Bastos saca disto:

Vejam bem: Bastos tem a alma limpa de preconceitos. Bastos é um santo. Bastos não é humano. Bastos não pode ser de cá.

O triste destino do Pedro Marques Lopes

1. O Pedro Marques Lopes resolveu dedicar-me um artigo. Como já foi soprado noutros locais, este texto em que o cronista do DN dardeja os colunistas “inimputáveis” que só escrevem “insultos e “ofensas” é-me dirigido. O seu estilo ad hominem é cobarde, porque não tem a transparência de nomear o interlocutor. O estilo costuma ser o homem, sabemo-lo bem, e não vejo motivos para abrir aqui excepção. Provavelmente não serei o único alvo, mas o meu retrato está lá em linhas fortes. Também é desonesto, porque ao mesmo tempo que não identifica o adversário (violando a primeira e óbvia convenção de uma polémica) enxameia o texto com uma enfiada de ironias, apartes e indirectas que nalguns casos permitem que quem leia me identifique; noutros, essas mesmas indirectas e acusações, sempre proferidas em abstracto, pouco têm a ver comigo. Evidentemente, quem o lê não terá o cuidado de fazer essa triagem. Mas ao Pedro Marques Lopes não interessa o rigor intelectual, porque ele não o tem. As regras de uma discussão leal e clara visivelmente não são para ele.

2. Este estilo de coluna “recadista” que consiste em fazer acusações aéreas e enviar indirectas pelos jornais e blogues é uma constante nos textos do Pedro Marques Lopes. Podem ler este outro escrito sobre os “novos revolucionários ditos de direita” como exemplo. Quem são os “novos revolucionários de direita” que inquietam Marques Lopes? Ninguém sabe. Melhor, sabem o próprio e talvez alguns dos referidos “revolucionários”, mesmo assim forçados a especular se o Pedro se está a dirigir a eles. Mas o Pedro Marques Lopes nunca os identifica, nunca cita os seus argumentos, nunca ilustra passagens dos seus textos para podermos fazer o contraponto. Fica tudo no etéreo, no vago, no confuso, porque o Pedro, consciente das suas profundas fragilidades, receia acima de tudo uma réplica para a qual estará impreparado. A gente percebe de vez em quanto que ele ataca Pacheco Pereira, este e aquele, mas a coisa nunca sai de um registo nebuloso que, não por acaso, é também o único que lhe permite atacar dispondo ao mesmo tempo de uma saída de segurança.

3. Neste seu artigo o Pedro Marques Lopes não demonstra rigorosamente nada daquilo que escreve; não especifica quem são os autores ou os pretensos divulgadores da “teoria que defende o princípio da inimputabilidade para quem escreve textos de opinião”; não concretiza essa teoria, nem o momento ou os termos em que foi defendida, a não ser através desta formulação falsa e retórica que eu não me recordo de alguma vez ter lido na nossa imprensa: “designa-se um texto ou um comentário numa qualquer estação de rádio ou televisão como opinião, e está automaticamente passada uma espécie de autorização para se dizer tudo o que vem à cabeça. Não há qualquer tipo de limites.”

Saberá o Pedro Marques Lopes realmente daquilo que está a falar? Alguma vez se tentou passar a ideia de que a liberdade de expressão constitui uma liberdade sem “limites”? Alguma vez se defendeu que o autor de uma coluna goza de um atestado “para dizer tudo o que lhe vem à cabeça”? Onde? Quem? Vivemos num país onde jornalistas e colunistas podem ser livremente processados por qualquer pessoa, titular ou não de cargos políticos. Onde são muitas vezes processados, como já o foram José Manuel Fernandes, Miguel Sousa Tavares ou o Daniel Oliveira, por políticos que se sentiram ofendidos. Vivemos num país onde só um lunático pode desejar sofrer um processo, devido ao currículo de Portugal em matéria de liberdade de expressão, um currículo que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem já corrigiu inúmeras vezes (o Pedro Marques Lopes poderia ter retirado informações úteis deste livro do Francisco Teixeira de Mota sobre a liberdade de expressão naquele Tribunal Europeu). Em Portugal o poder político pode, como já foi noticiado por uma revista, manipular os seus investimentos publicitários, afectando as condições do exercício da liberdade de imprensa e a situação financeira e profissional de jornais e centenas de jornalistas. No entanto, o Pedro Marques Lopes está preocupado com os colunistas que escrevem “barbaridades” sobre os políticos. Assim de repente, lembro-me que ele não é o único a manifestar esta preocupação. O outro chama-se, ao que parece, José Sócrates.

4. Mas devo ser justo com o Pedro Marques Lopes. Porque apesar de não saber aquilo que critica, parece-me claro que o Pedro não é apenas ignorância e sabe muito bem o que pretende conseguir. A sua doutrina alternativa para a liberdade de expressão é um convite puro e simples à auto-censura da imprensa. Num país onde há 40 anos não existia liberdade de expressão, onde a tradição do respeitinho está há muito enraizada e onde a crítica incómoda à actuação do poder político é muitas vezes tomada pelos destinatários como ofensa pessoal e como obstáculo à sua “liberdade”, eis o que tem Marques Lopes para defender. Uma das posições mais reaccionárias sobre a liberdade de expressão que sempre encontrou em Portugal terreno fértil. Uma posição que interessa aos poderosos e aos maus governantes. Uma posição que cai bem nos medíocres e prevaricadores.

5. Para combatermos esta mesma tradição de falta de escrutínio, de segredo e irresponsabilidade, não tenho dúvidas de precisamos de mais imprensa incisiva, crítica e atenta. De uma imprensa certamente responsável (perante a lei e perante o público) mas vigilante. Nada disto sugere qualquer ausência de limites, privilégios legais ou “inimputabilidades” (?). Pelo contrário: sugere que um colunista leve a sério a sua liberdade de expressão democrática dentro daquela função de vigilância e formação do debate público, sobretudo no contexto de uma relação desigual entre um governante e um mero cidadão. É importante que as suas opiniões, quando estão em causa condutas suspeitosas de responsáveis políticos, exprimam um juízo de valor construído a partir de factos conhecidos, noticiados ou demonstráveis. As pessoas podem discordar, podem sentir-se injuriadas quando são criticadas com argumentos públicos. Têm instâncias, direitos de resposta, tribunais e uma miríade de leis com que podem reagir. Nuns casos poderão ter razão; noutros, conforme sucedeu recentemente com o João Miguel Tavares, estarão a gastar o tempo já escasso da justiça portuguesa. É este o “sistema” que temos. O triste destino do Pedro Marques Lopes é que, apesar de todos os seus esforços para fugir à claridade com acusações contra incertos e insinuações genéricas, há cada vez mais gente que o percebe.

O Regresso do Jedi


Muito bem, Pedro, fica com o título em carteira mas escreve uma nova crónica sobre este assunto. Podes chamar-lhe Mártires da Opinião II ou Mártires da Opinião redux. Ou até O Regresso do Jedi. O importante é que, nessa crónica, nos vais contar quem são os autores da já famosa teoria da inimputabilidade. Quem defende tamanha enormidade. Aproveitas e esclareces também quem é que, impunemente, anda a chamar "ladrão", "corrupto" e "intrujão" ao próximo. E quem acusou o “ignorante" desconhecedor do estatuto especial dos opinadores de que falas de estar a fazer pressão ilegítima sobre os colunistas. Finalmente, vais elucidar-nos sobre quem são esses opinadores cujos serviços foram dispensados e que acabaram a queixar-se de perseguição política.

É que, assim como está, a tua crónica fica coxa. Faz lembrar as investidas do saudoso Octávio Machado, como a célebre tirada: “não vou nomear nomes porque as pessoas sabem do que estou a falar”. A menos, claro, que isto não passe de um exercício lúdico teu, construído a partir de umas bocas de taxistas e cabeleireiros. Se for isso, o melhor mesmo é irmos jantar, beber uns copos e dar umas gargalhadas.

O desejo de novo Pacto Germano-Soviético

Dêem-me uma alavanca e um ponto de apoio e eu escreverei uma crónica


Parece que “corre uma interessante teoria” segundo a qual quem escreve textos de opinião beneficia de um estatuto de inimputabilidade. Parece, porque, na realidade, esta teoria (apesar de sugestiva) não corre em lado nenhum. Limita-se a existir estática, quieta e instrumentalmente parada no último artigo do meu amigo Pedro Marques Lopes. Como um alvo imaginário contra o qual se atiram dardos. Ou se constrói uma crónica.

Sinceramente, gostava que o Pedro me satisfizesse duas curiosidades: primeiro, quem são os defensores de tal teoria e por onde têm eles andado a defendê-la; segundo, quem são as vitimas dos insultos e das calúnias dos terríveis opinadores inimputáveis.

Estamos de acordo que, numa democracia liberal, o direito de reagir judicialmente contra ofensas morais é um direito essencial. As palavras têm consequências, e sem mecanismos de defesa da honra e do bom nome a liberdade de expressão desemboca na selvajaria. Mas em Portugal - e olho agora para o código penal - já há suficientes instrumentos para responder aos abusos da liberdade de expressão. Quer a difamação quer as injúrias são crimes previstos e punidos seja quem for o agente. Logo, por mais que procure, não vejo onde está esse estatuto especial do opinador. Aliás, o nosso primeiro-ministro é um bom exemplo de que os mecanismos existem e podem ser usados: tendo-se sentido atingido na honra, não se coibiu - e bem, porque é o seu direito - de avançar com uns quantos processos judiciais contra os autores dos textos em causa.

Agora o que ainda não há – e se calhar é disso que o Pedro se queixa – é uma acção judicial para travar a percepção geral das coisas. Uma acção para usar contra aquilo a que se poderia chamar de volksgeist do quotidiano. Se o povo comenta no café, o funcionário se interroga no trabalho, o jornalista pergunta no jornal, e o colunista opina sem ser indiferente a tudo isto, o que é que eu - não-corrupto, não-intrujão, não-ladrão - posso fazer?

Processar tudo e todos, de facto, talvez não seja o mais aconselhável.


PS: Há, no entanto, um submundo onde a calúnia se tem vindo a acomodar: um tal de anleite , referindo-se a mim, diz que sou neto de avô incógnito. A afirmação é patética e esdrúxula, porque falsa e fácil de desmentir (os meus avôs são tão incógnitos que até constam do IMDB). Mas isso pouco importa (desde quando é que um avô incógnito desqualifica alguém?). O sintomático é que esta gente se sente cada vez mais à vontade para vomitar barbaridades em público. Sentimento de impunidade? Possivelmente. Mas também prova da irrelevância daquilo que dizem.

A corrupção não tem ideologia

Não há corrupção de esquerda ou de direita. Não existem os nossos e os vossos corruptos. Pode haver os nossos sacanas porque a política está muito longe de ser um jogo de virtudes. Mas, fora isso, os corruptos são corruptos. Não têm ideologia, não diferem nos métodos que usam nem nos crimes que praticam.

O Eduardo Pitta escreve neste post que aguarda pelas "reacções indignadas" sobre o processo-crime contra a antiga gestão de Carlos Horta e Costa nos CTT, nomeada pelo governo de Durão Barroso. Pensa o Eduardo Pitta que andamos a ser selectivos quando questionamos os casos que envolvem figuras do PS, sem nada dizermos sobre os que afectam personalidades da "direita" ainda por cima com apelidos sonantes.

Está enganado. Se há indícios da prática de crimes económicos na venda de dois edifícios do Estado, que foram investigados e geraram uma acusação pública, os factos em causa merecem ser condenados sem reservas. Aqueles gestores devem ser punidos pela sua incompetência e ilegalidades se o Ministério Público provar a sua acusação em tribunal. O Estado também foi omisso nos seus poderes de tutela, demonstrando-se mais uma vez que muita coisa precisa de ser feita para submeter as empresas públicas a normas de controlo e transparência. A justiça deve funcionar contra todos. Como disse, não existem corruptos de direita ou de esquerda. Talvez só do centro.

Quero por isso tranquilizar o Eduardo Pitta. Em matéria de corrupção não fazemos distinções ideológicas. Nem nas acusações de crimes que não são tecnicamente de corrupção mas que merecem censura (eu próprio escrevi algo nesse sentido, durante a campanha eleitoral, sobre António Preto). Não temos duas medidas.

Mas, por isso mesmo, também esperamos do Eduardo alguma reciprocidade. Queremos que ele se "indigne" sempre que houver nomes do PS implicados em escândalos (de corrupção ou ilegalidades várias). Queremo-lo com espírito crítico e atento. Tem agora este episódio fresquinho de Armando Vara para seguir de perto. E uma vez que o Eduardo Pitta lembra aos gentios que nos CTT a administração de Horta e Costa vendeu dois edifícios sem concurso público, a minha memória não se lembra de o ter ouvido quando o Porto de Lisboa renegociou a concessão do terminal de contentores de Alcântara à Liscont (da Mota-Engil) sem concurso público. Tinha aí uma oportunidade, Eduardo, para verberar uma ilegalidade consentida por este governo. Se ficou calado (como creio que ficou, mas assumirei o meu lapso se mo demonstrar), foi uma pena. Reciprocidade é tudo o que pedimos.

Vasco e as ondas

Confesso que até há muito pouco estava convencido que o Vasco Campilho era uma personagem cómica ficcional criada pelo maradona. Pessoas que merecem o meu crédito garantem que estava enganado num ponto: não foi o maradona que o inventou. Eu acredito.
Também me asseguram que a comédia do Vasco não é intencional. O Vasco não nos quer fazer rir. O riso que provoca é um dano colateral da sua actividade política. A vocação do Vasco é a construção de ideias, vagas de fundo e o ocasional carneirinho, como este.
Terminado o período antes da ordem de trabalhos, gostava de pedir ao Vasco que tenha a gentileza de nos esclarecer pequenas dúvidas que ficaram depois de ler este post, para ver se encerramos o assunto porque já chega de anti-passismo.
Vejamos então: o Vasco Campilho sustenta que a posição de PPC sobre o TGV nunca mudou, o que torna especialmente interessante saber qual foi a motivação desta notícia assinada por Francisco Almeida Leite na edição do DN de 21 de Janeiro de 2009 ?
[...]
Apenas alguns dias depois da entrevista de Manuela Ferreira Leite à RTP1, onde a líder do PSD disse que preferia acabar com o investimento no TGV a favor de uma redução de impostos para dar mais liquidez às empresas e às famílias, agora Passos Coelho vem insistir que "o TGV é um projecto estratégico que envolve compromissos assumidos por vários Governos". Uma ideia que já tinha defendido na entrevista ao DN e à TSF no domingo passado e que agora desenvolveu para o público restrito da conferência da Economist."

Terá sido incompetência do jornalista ? Hostilidade a PPC de Francisco Almeida Leite, do Francisco Almeida Leite desta história ? Qual é a explicação ?

E, por outro lado, como é que a tão propagandeada capacidade comunicacional de Pedro Passos Coelho - esse suposto talento obamista, esse novo Plínio - resultou na deturpação sistemática da sua ideia em dezenas de órgãos de comuncação social (a notícia do DN é só um exemplo aleatório) ? Como foi possível ?
Talvez o Vasco, que se senta à direita de Passos, nos possa esclarecer.
Aguardemos.

E se deixassem a poeira assentar e reflectissem enquanto esperam ?

Era bom que estas coisas fossem ponderadas com calma e profundidade. Não me parece bem pensado e muito menos oportuna a criminalização do enriquecimento ilícito.
Legislar à queima-roupa sobre questões sensíveis é encomendar entorses e sarilhos.

As contradições de Passos Coelho consigo mesmo

Vasco Campilho respondeu ao meu artigo sobre Pedro Passos Coelho com algumas derivações pessoais. No meu texto não me lembro de ter feito qualquer crítica no plano pessoal a Pedro Passos Coelho, que nem sequer conheço. Limitei-me a fazer um juízo político sobre a sua consistência e convicções durante o último ano. Apreciei o seu carácter político e apresentei factos. Vasco Campilho, um apressado aspirante a político que até já tem uma página no facebook a dizer “aqui não há fãs mas cidadãos”, resolveu partir do artigo para fazer avaliações ao meu carácter. Sugiro-lhe que se remeta ao seu nobre lugar de Miguel Abrantes do passos-coelhismo. Não me conhece de lado nenhum, nem eu irei perder muito tempo a explicar-lhe o que ele não consegue ou não pode ver.

Quanto à substância, reafirmo tudo o que escrevi. Para rebater os “meus” factos, Vasco Campilho diz que eu distorci as afirmações de Passos Coelho sobre o TGV. Adianta que, dias antes da notícia de 18 de Janeiro, Passos Coelho afirmou que “não temos condições este ano e para o ano para avançar”.

Obviamente, não houve qualquer distorção. Se em Janeiro a posição de princípio de Passos Coelho sobre o TGV era a de que a obra deveria ser suspensa, então não se compreende que logo após a entrevista à RTP em que Manuela Ferreira Leite defendeu essa mesma suspensão, ele tivesse contribuído para a circulação do sound-byte "Passos Coelho defende o TGV, em nova divergência com a líder do PSD". Ao mesmo tempo que silenciava por completo a questão da suspensão do investimento, o ponto nuclear da posição de Ferreira Leite.

Os objectivos de Pedro Passos Coelho eram óbvios: publicitar uma divergência com Manuela Ferreira acerca da recalendarização do TGV e dos compromissos já assumidos. Uma divergência que, vemo-lo agora, nem sequer existia. Mas foi assim que em Janeiro a notícia circulou pelos jornais, numa estratégia destinada a enfraquecer a liderança do PSD. Por isso, escreveu nomeadamente o Sol de 20 de Janeiro:

Desacordo com Ferreira Leite

A posição de Passos Coelho colide com a da líder do PSD, Manuela Ferreira Leite, que recentemente propôs «riscar imediatamente» o projecto da alta velocidade se vencer as legislativas de 2009.

Eis o sound-byte: Passos Coelho colide com a proposta de Ferreira Leite de "riscar imediatamente" o TGV.

No Diário de Notícias, pela mão do jornalista que assinou quase todas as peças sobre Passos Coelho e que lá terá as suas próprias fontes privilegiadas, a notícia é ainda mais explícita.

(...) Solução mantém compromissos internacionais
Em vez de riscar ou de cortar "imediatamente o TGV", como defendeu há dias a líder do PSD, Pedro Passos Coelho tem outras ideias para a alta velocidade (...).

De novo, sem margem para dúvidas, o mesmo sound-byte. Solução mantém compromissos internacionais, numa peça jornalística cheia de ambiguidades propositadas. Sobre a ideia de adiar o avanço do projecto, como parece que tinha defendido alguns dias antes, nem vê-la. Não interessava referi-la aqui, porque precisamente iria estragar o sound-byte. Como sempre, Passos Coelho não podia aparecer em público a dizer o mesmo que Manuela Ferreira Leite. Para ele, era muito melhor se aparecesse a dizer o mesmo que José Sócrates.

É evidente que, nestas circunstâncias, qualquer pessoa politicamente decente e leal teria sustentado com clareza a necessidade de suspender o TGV. Esse mesmo aspecto teria escorrido normalmente para a imprensa. Mas Pedro Passos Coelho entendeu que deveria fazer política de segunda categoria. E foi esta ambiguidade política impostora que eu critiquei no meu artigo e que outros na blogosfera até já tinham criticado em Janeiro, com os mesmos fundamentos.

Essa impostura atingiu o cúmulo na entrevista de domingo, no momento em que Passos Coelho apareceu a defender as mesmas ideias económicas de Manuela Ferreira Leite e, em particular, a suspensão do TGV. Ficámos todos a perceber que a maior e mais insanável divergência não é entre Pedro Passos Coelho e Manuela Ferreira Leite. É entre Passos Coelho e ele mesmo.

Moralildade pública


Muita gente não percebeu ainda o que separa o julgamento da moralidade pública da moralidade privada de um governante. Muita gente não percebe ou não quer perceber que um governante até pode ser um canalha em privado desde que seja rigoroso e confiável no domínio das suas competências públicas. Este último plano é tudo o que nos deve interessar. Os julgamentos do carácter de um político devem restringir-se à moralidade como ele exerce as suas funções: à ètica pública e não à ética privada, ao modo como cumpre as convenções democráticas, respeita os adversários e as regras do jogo político. Neste plano estamos autorizados a ser exigentes e atentos. Por isso, este artigo da Constança Cunha e Sá, ao formular uma crítica ao moralismo - "no momento em que se salta da crítica política para análises moralistas sobre o carácter do primeiro-ministro" - , é um texto errado por não se ocupar daquela subtil distinção. O que está em causa. o que sempre esteve em causa, é tão-só um julgamento público.

Paciência recíproca

Não, Isabel, a minha ironia não era dirigida pessoalmente contra ti e muito menos para diminuir a tua opinião, que respeito em absoluto, mas contra aquele argumento ad terrorem e falso que tem levado algumas pessoas, de maneira imprópria e às vezes contradizendo aquilo que já defenderam no passado, a equiparar a situação do primeiro-ministro à de um cidadão comum. Até agora nenhum jornal dos que já publicaram notícias sobre o caso "Face Oculta" violou a privacidade de José Sócrates. O segredo de justiça sim, mas nenhum dos factos já tornados públicos diz respeito à vida privada do primeiro-ministro, mesmo que tivesse sido retirado de conversas com um amigo. Se quiseres posso dar-te outros exemplos de casos análogos e nem é preciso mencionar os Pentagon Papers que, contra o segredo de Estado, a segurança nacional e as conversas particulares de Nixon, apareceram nos jornais e foram depois confirmados por uma decisão histórica do Supremo Tribunal Federal Americano. Há dois anos o antigo primeiro-ministro da Hungria, Ferenc Gyurcsáni, também foi gravado numa reunião privada com membros do seu partido a dizer que "tinha andado a mentir aos húngaros nos últimos dois anos". Foi tudo divulgado e ele precisou de responder por isso.

Continuo a dizer - felizmente há muita gente que defende exactamente o mesmo - que tudo o que o primeiro-ministro tiver comentado com Armando Vara que seja revelador de uma conduta politicamente irresponsável e manipuladora, em particular no que se refere às suas relações com a comunicação social, deve ser esclarecido para podermos formular o nosso próprio juízo sobre o tema. Continuo também a dizer - e há muita gente a dizer o mesmo - que as escutas a Armando Vara em que interveio o primeiro-ministro são válidas, mas não creio que devamos enxamear este problema com o típico formalismo e indefinição em que alguns juristas são especialistas. O problema é político e é nesse território que deve ser analisado.

Por fim, é óbvio que o meu reparo também não te visava a ti mas ao blogue onde decidiste escrever que foi muito crítico, por exemplo, do Presidente da República mas que não é capaz do mesmo espírito contra o governo e o primeiro-ministro. De resto, já tive várias oportunidades para testemunhar a tua liberdade e coragem e a última delas aconteceu há pouco tempo. Quanto ao resto, conversamos face-to-face. Até breve.

Depois da desinformação, as escutas socráticas

: E como hás-de encontrar uma coisa de que não sabes absolutamente nada? Na tua ignorância, que princípio tomarás para te guiar nesta investigação? E se, por acaso, encontrasses a virtude, como a reconhecerias, se nunca a conheceste?

: Compreendo o que queres dizer. Que magnífico argumento para uma discussão ! Não é possível o homem procurar o que já sabe, nem o que não sabe, porque não necessita de procurar aquilo que sabe e, quanto ao que não sabe, não podia procurá-lo, visto não saber sequer o que havia de procurar.

: Não te parece bom esse raciocínio ?

: Decerto que não.

: Podes dizer-me então: a virtude é coisa que se ensina? Ou não é coisa que se ensina mas que se adquire pelo exercício? Ou nem coisa que se adquire pelo exercício nem coisa que se aprende, mas algo que advém aos homens por natureza ou por alguma outra maneira ?

: Também estou tão longe de saber se isso da virtude se ensina ou não, que nem sequer sei o que é que a virtude possa ser com ela me cruzar. Na realidade, também me encontro nesse estado. E, quem não sabe o que uma coisa é, como poderia saber que tipo de coisa procurar? Ou parece-te possível, alguém que não conhece absolutamente quem é, saber se é belo, se é rico e ainda se é nobre, ou mesmo o contrário dessas coisas? Parece-te isso possível ?

: Não, a mim não. Mas tu, já vejo bem, verdadeiramente não sabes o que é a virtude, e é isso que, a teu respeito, devemos levar como notícia para casa ?

: Pareces a velha.

Coffee table books

























Uma mulher objecto; duas mulheres objecto; um Keith Richards objecto (ou abjecto, como queiram).

[Sante D'Orazio, Barely Private, Taschen 2009]

O estilo paranóico na política portuguesa















Richard Hofstadter foi um grande historiador americano de meados do século americano. Conhecido pelas suas simpatias à esquerda, ficou sobretudo famoso por um artigo publicado na revista Harper’s nessa altura, O estilo paranóico na política americana. Ainda hoje esse ensaio, de leitura obrigatória, é considerado um dos mais influentes artigos nos 150 anos de história da revista. Quem eram os paranóicos para Hofstadter? Os republicanos que contaminavam o debate político com toda a espécie de suspeições e cabalas, teorias da perseguição, fugas para a frente, reacções escandalizadas e no meio de tudo uma dose apreciável de desconversação. Faziam-se vítimas de uma orquestra obscura que os pretendia liquidar a todo o custo. Creio que é possível escrever em Portugal exactamente o mesmo tipo de ensaio de Hofstadter mudando somente os protagonistas. Os nossos paranóicos, desconversadores, "perseguidos" são outros. Mas usam a mesma estratégia irracional de debate, para evitarem discutir o que mais interessa.

Paciência é o que temos tido

Diz aqui a Isabel Moreira que se o Parlamento fiscalizar José Sócrates pelos actos políticos que resultam das suas conversas com Armando Vara todos temos que ficar preocupados com a devassa geral que aí se prepara às nossas privacidades.

Quero tranquilizar a Isabel. A privacidade dela ou de qualquer outra pessoa não corre perigo nenhum se José Sócrates responder perante o Parlamento acerca das suspeições que têm sido noticiadas sobre as suas interferências na independência dos meios de comunicação social. Acho que o Correio da Manhã não está interessado.

Eu repito: Sócrates é primeiro-ministro, exerce um cargo de governo, detém o poder político máximo em Portugal. Não é um cidadão comum. Está sujeito a um escrutínio mais intenso daquele que é devido aos outros cidadãos. É um escrutínio institucional sobre os actos funcionais (e não pessoais) de um membro do governo. Sabes bem disso, Isabel, porque também o ensinaste durante muitos anos na universidade.

Repito também que o objecto da comissão parlamentar de inquérito está claro na crónica que escrevi: interferências do governo na independência dos meios de comunicação social (conhecimento prévio de Sócrates do negócio da TVI, suspeitas de intervenção do primeiro-ministro junto do BCP para a renegociação das dívidas da Global Notícias, suspeitas sobre a manipulação política dos investimentos publicitários do Estado nos jornais).

Todos estes alegados factos devem ser investigados e apurados, por razões óbvias, através dos instrumentos próprios da responsabilidade política do governo. E nenhum deles foi desmentido pelo primeiro-ministro. Nem o seu conhecimento do negócio da TVI (na verdade Sócrates até afirmou que uma coisa foi o seu conhecimento informal e outra o conhecimento público, admitindo por essa via que até tomou conhecimento do negócio e por isso mentiu ao Parlamento), nem a suposta renegociação das dívidas da Global Notícias, nem todos os factos adicionais que parecem apontar para um projecto sistemático de controlo da comunicação social por parte deste governo e, em particular, deste primeiro-ministro).

Aliás, nem era preciso termos tomado conhecimento parcial do conteúdo das escutas. Tudo aquilo de que antes já se suspeitava seria suficiente por si para justificar um inquérito parlamentar.

E de onde vem essa ideia, Isabel, de que o despacho de arquivamento do Procurador-Geral desmentiu a veracidade das notícias já publicadas? O despacho de arquivamento significa que o Procurador-Geral entendeu que não havia matéria criminal nas conversas entre Vara e Sócrates. Não desmente rigorosamente mais nada. Não desmente a relevância política dos factos contidos nessas conversas.

Mais ainda: nem sequer desmente a sua relevância jurídica, porque o primeiro-ministro pode ter cometido inúmeras ilegalidades (administrativas, por exemplo) que não constituem crimes e devem ser esclarecidas. Estou a pensar, por exemplo, em potenciais violações à lei do financiamento partidário. São matérias que precisam de ser investigadas.

A Isabel ignorou no entanto um ponto importante. Uma comissão de inquérito parlamentar pode ser constituída com restrições de publicidade no interesse do direito do primeiro-ministro à privacidade. Na minha crónica eu quis sublinhar este mesmo aspecto. Ninguém tem interesse legítimo em saber que espécie de comentários laterais ou de linguagem usa o primeiro-ministro em conversas com o seu amigo de longa data Armando Vara. Uma comissão de inquérito nessas condições conjugaria os valores em presença: fiscalização política e sigilo. Se nem este compromisso for aceite pelo partido do governo, então somos livres de especular e avaliar politicamente essa recusa. A privacidade do primeiro-ministro tornou-se um fundamento frouxo para fugir ao esclarecimento.

Há uma nota final que vem a propósito. Não posso deixar de reparar na contradição assustadora que existe num blogue que se aplica na intolerância e exigência moral contra tudo o que mexe mas que, tratando-se do governo e do primeiro-ministro, fica mudo e quedo. É uma contradição sobre a qual também me permito especular.

Uma questão de perspectiva ou uma perspectiva da questão



If you are an idealist, you'll see idealism in her films; if you are a classicist, you'll see in her films an ode to classicism; if you are a Nazi, you'll see in her films Nazism (Jonas Mekas sobre Leni Riefenstahl, em 1974).

O triunfo dos antissépticos

Na contracapa do dvd de O Triunfo da Vontade (1935), pode ler-se o seguinte: Leni Riefenstahl foi actriz, realizadora e fotógrafa. Uma personagem controversa, uma visionária e acima de tudo uma sobrevivente que viveu grande parte dos seus 101 anos desvinculando-se mil e uma vezes da enorme sombra de suspeita que projectavam as suas duas obras primas: O Triunfo da Vontade e Olympia.

Não sendo formalmente incorrecto, este texto tem porém uma mensagem subliminar que o é: a ideia de que Riefenstahl foi erradamente tomada por nazi, quando na realidade apenas se tratava de uma cineasta visionária que, por acaso, filmou muito bem o nazismo. Uma espécie de tranquilizador para a consciência do consumidor ideal. Ou uma bisnagada daquele gel para gripes que agora há por todo o lado.

Acontece que há quem compre o filme, veja o filme e goste do filme sem se importar um segundo que a realizadora tenha sido, de facto, nazi. Mais, há quem ache até que a grande força do filme está, precisamente, nessa circunstância. O Triunfo da Vontade não seria o Triunfo da Vontade se tivesse sido filmado sob a ameaça da pistola de Goebbels. O contexto pertence à obra, como o virus pertence à doença. Ao menos nisto, poupemos nos remédios.

O Elogio da Samarra

Independência absoluta

Atentemos às palavras de Sócrates (o secretário-geral, não o primeiro-ministro).

Claro. A afirmação de Manuela Ferreira Leite de que o primeiro-ministro mentiu ao parlamento quando negou que conhecia o negócio da TVI só pode resultar do conhecimento prévio das escutas.


Mas não é por aqui certamente. A instrumentalização da PT só pode ter acontecido até 2005. Acabou aí. Desde 2005 para cá: independência absoluta.

Justiça comutativa: a cada um o que é devido


A semana passada acabou para nós com duas referências pessoais simpáticas em blogues bastante distantes. Não nos sentimos obrigados a retribuir, mas temos uma sincera vontade de o fazer.

Nem sempre é bom conhecer a pessoa por trás do blogger. Reduz o poder de fogo, nuns casos, destrói preconceitos estimados, noutros. Deixa-nos mais moles, mais indiferentes. Com o João Gonçalves e com o Val (Valupi, para desconhecidos), não foi o que se passou.


A propósito do Val reafirmamos tudo o que por aqui foi escrito sobre anónimos. Simplesmente retiramo-lo da categoria. Hoje sabemos que o Valupi dá a cara pelo que escreve e isso faz toda a diferença. Para nós é agora tão não-anónimo como, por exemplo, o Maradona.


Continuamos a discordar politicamente sobre as aventuras do primeiro-ministro, mas confirmamos que Sócrates perdeu um assessor nesse fim de tarde. O problema (para nós) é que como compensação ganhou um aliado circunstancial que vale um gabinete inteiro. Mas, enfim, também ficámos conscientes que amanhã, com outras circunstâncias, os aliados serão outros. E então, para variar, poderemos entender-nos durante uns tempos.


O João é – como alguém um dia lhe terá dito – o blogger mais antipático do mundo. Só que para nós a “antipatia” é qualidade. Mais ainda quando as bordoadas são dadas num estilo e português impecáveis. Só não achamos graça quando o alvo é a nossa mãe.

Duarte e Eduardo

Ereto

























“Vamos desovar ele no lixão.”

Foi última coisa que ouvi. Quando voltei a ter consciência, abrindo os olhos e vendo estrelas, era de noite. Eu estava jogado no lixão de uma favela, no meio de restos de comida, merda, lixos variados, coisas putrefatas, um fedor nauseabundo. Ao meu lado um presunto, um negro grande com o rosto estourado de porradas e o corpo cheio de furos de bala. Tenho que dar o fora daqui, pensei. Mas não consegui ficar de pé e fui me arrastando, me arrastando como um verme. Então me lembrei de uma frase que li num dos livros do Bruce Chatwin, sobre a importância da postura ereta, a postura ereta, ainda mais do que o desenvolvimento da linguagem, ainda mais do que a presença do superego, entre esses atributos do homem que o elevaram acima do reino animal, a postura ereta era o mais importante. Anda, seu filho da puta, eu disse para mim, fica em pé, ereto, seu merda, ereto.

Então, com grande esforço me ajoelhei, depois me ergui lentamente, ficando em pé. Ereto. Poder sair do lixo sem rastejar me deu uma das maiores alegrias da minha vida. Fui andando, cambaleando, mas ereto, dando passos lentos, mas ereto, como um homem deve caminhar, ereto. Então tudo escureceu.