Quando o meu argumento consistiu numa análise institucional ao nosso sistema de governo e à continuidade entre a ditadura e a democracia de uma enorme concentração de poder no executivo (a mesma continuidade que determinou que tivéssemos um sistema sempresidencial), a minha sempre colega Isabel Moreira achou aqui que comparei Sócrates a Salazar. Como é evidente, ofendeu-se com uma comparação que não fiz. Mas não era preciso ter subvertido, na forma e na substância, o meu texto. Ao menos o Vasco Barreto, mais perspicaz, deu de barato a caricatura ("obviamente, estas interpretações literais são uma caricatura minha, pois ambos têm sempre presente o paradoxo que é a persistência em democracia de características que são mais próprias de estados autoritários").
O problema não está na "persistência em democracia de elementos autoritários" (eu preferiria chamar-lhes "arbitrários", mas de facto esse é outro tema). O problema reside na imparável governamentalização do Estado, da Administração, da economia e até da justiça que era obviamente elevada no salazarismo (face à natureza do regime) mas que tem crescido continuamente, sob outros moldes e roupagens, neste regime democrático e sboretudo nos últimos anos da maioria absoluta do primeiro-ministro que desde 1976 menor respeito demonstra pela separação básica entre o Estado e a sociedade (tudo pode depender de alguma maneira do Estado, desde que sirva os seus interesses políticos).
O último artigo de José Manuel Fernandes no PÚBLICO ilustrava muito bem este fenómeno. Sugiro que o leiam com atenção. Chama-se a isto politização e governamentalização das estruturas da Administração, das entidades reguladoras (quem foi o recente nomeado para a administração da ANACOM senão um antigo membro do gabinete de Sócrates?), das empresas públicas, das grandes empresas privadas onde o Estado tem participações relevantes ou pode interferir na sua gestão, das empresas escolhidas discricionariamente para os projectos económicos do governo (o Magalhães). Jorge Coelho ficou célebre pelo adágio "quem se mete com o PS, leva". Creio que, como os verbos "meter" e "levar" são polissémicos, a frase tinha outro subtexto: "quem não se mete no PS, não leva".
No fundo e adaptando o célebre "tudo pela nação, nada contra a nação" de Salazar, hoje o slogan resume-se de outra forma: "Tudo pelo Estado, nada contra o governo". Portugal, 2010.