Extinção das Golden Shares e Regulação

O João Miranda (e o André Azevedo Alves, na sua senda) interpretou mal as palavras de Paulo Rangel sobre o papel que atribuiria à regulação para compensar a extinção das golden shares.O equívoco nasce claramente do ponto de partida do João Miranda, que assumiu (sem apoio literal) que Rangel vê as golden shares como um instrumento de bloquio da «entrada de estrangeiros (subvertendo o mercado), para promover negócios de Estado (Galp na Venezuela, no Brasil e em Angola) ou para promover investimento português no estrangeiro (participação na Vivo pela PT no Brasil e investimentos da EDP nos Estados Unidos)».
A verdade, porém, é que, ao contrário do que afirma João Miranda, Rangel não fez qualquer referência a esse tipo de actuação do Estado através das golden shares. Muito menos a aceitou. Não se percebe de onde retirou o João Miranda aquela ideia. O que é certo é que não se fundou em nenhuma declaração de Paulo Rangel. Até porque um regime regulatório que procurasse bloquear a entrada estrangeiros (da UE) seria incompatível com o direito comunitário.
Quando afirma (preliminarmente, relembro) que é desejável que a regulação cumpra a missão actualmente desempenhada pelas golden shares, Rangel pensa certamente nas funções «legítimas e lícitas» que lhes são correntemente atribuídas: (i) evitar rupturas de mercado em certos sectores estratégicos com um número de operadores limitado (fornecimento de energia eléctrica; aeroportos, gestão de linhas de caminho de ferro); (ii) assegurar a concorrência e (iii) a protecção dos consumidores ou, ainda, (iv) a manutenção de reservas estratégicas de certos bens (ex: combustíveis).

Boa parte destes objectivos são cumpridos pela tutela da concorrência nas suas diversas dimensões (que é uma actividade de regulação, note-se), contudo, não se esgotam aí as áreas em que o mercado exige correcção.
Recorde-se, aliás, que o argumento substantivo invocado pela República Portuguesa para sustentar a manutenção das golden shares na PT no seu contencioso com a UE é a salvaguarda para o Estado da «disponibilidade da rede de telecomunicações, que desempenha um papel essencial, designadamente, em situações de crise, de guerra ou de terrorismo».

O que Rangel parece propor é que o Estado extinga as golden shares e passe a assegurar parte das funções desempenhadas pelas mesmas através de entidades reguladoras, com clareza e transparência e evitando os desvios de poder que são uma prática recorrente e cada vez mais conhecida.

Um liberal puro talvez discorde de toda e qualquer fórmula de regulação, mesmo a que se reduza a evitar rupturas de mercado, a assegurar a concorrência e defesa dos consumidores. Um liberal puro pode achar que o livre funcionamento do mercado resolve todos estes problemas ou que nenhum destes aspectos merece preocupação e discordar de Rangel por não renunciar também a esse nível mínimo de intervenção. Mas essa discordância ideológica não legitima uma deturpação do que foi dito. João Miranda pode discordar, mas não pode adulterar as declarações de Paulo Rangel ao DN, imputando-lhe a intenção de se servir de autoridades reguladoras para subverter o mercado impedindo a entrada de empresas estrangeiras e impondo às empresas nacionais comportamentos no estrangeiro que favoreçam os "interesses nacionais".

Gostava, aliás, de saber como se faria isso de impor às empresas nacionais comportamentos no estrangeiro que favoreçam os "interesses nacionais" ?