Escreve o Juiz-Conselheiro Eduardo Maia Costa aqui:
Tenho como seguro que a ingerência nas comunicações só é admissível em processo penal, tal como diz o nº 4 do art. 34º da Constituição, e que esta norma, pela sua excepcionalidade, é insusceptível de analogia.
Por isso, não sei o que estão a fazer as escutas telefónicas do caso "Face Oculta", que é um processo judicial, num inquérito parlamentar, que não tem a natureza de investigação criminal.
With all respect, penso que Eduardo Maia Costa não tem razão. O seu argumento é aliás demonstrativo de um non sequitur. A presença das escutas da "Face Oculta" no inquérito parlamentar ao caso PT/TVI não pressupõe nenhuma aplicação analógica do artigo 34º/4, que ele tem como "segura", mas uma aplicação directa não só dessa norma constitucional como de outras normas.
O que o artigo 34º/4 refere é que está proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, das telecomunicações e nos demais modos de comunicação, salvo nos casos previstos na lei em matéria de processo penal.
A regra é a regra; a excepção é outra regra diferente. As autoridades públicas só podem intrometer-se nas comunicações privadas e nos outros meios de comunicação dentro dos casos previstos na lei de processo criminal.
O artigo 34º/4 proibirá que uma comissão parlamentar, nos seus poderes de investigação análogos aos das autoridades judiciárias, faça uso autónomo de diligências que autorizem intromissão nas comunicações privadas fora do processo criminal. Dito de outro modo: embora gozem dos mesmos poderes de investigação das autoridades judiciais, podendo nomeadamente interrogar pessoas, as comissões de inquérito não têm poderes para autorizar intromissões nas comunicações privadas à revelia dos casos e das garantias do processo penal.
Mas o artigo 34º/4 já não proibirá que, num inquérito parlamentar (e para-judicial) conduzido por órgão de soberania, a comissão parlamentar consulte meios de prova resultantes de apreensões ou intercepções de comunicações particulares se estes tiverem sido validamente autorizadas e executadas nos casos previstos na lei em matéria de processo criminal. Desde que autorizadas e validadas de acordo com a lei no processo penal, poderão ser usadas no âmbito de processo de inquérito.
Por isso, não se pode estranhar o que refere a lei dos inquéritos parlamentares (art. 13º):
3 - As comissões podem, a requerimento fundamentado dos seus membros, solicitar por escrito ao Governo, às autoridades judiciárias, aos órgãos da Administração ou a entidades privadas as informações e documentos que julguem úteis à realização do inquérito.
Entre esses documentos e informações requisitáveis estão obviamente as escutas validamente autorizadas nos casos previstos na lei em matéria de processo penal.
E não vale dizer que um inquérito parlamentar não tem a natureza de uma investigação judicial, pelo que o processo penal nunca poderá ser "utilizado", com as devidas adaptações, dentro do processo de inquérito.
No plano das consequências, a afirmação é correcta. Nenhum inquérito tem competência para decidir a culpa penal de uma pessoa. No plano deontológico, a afirmação não é rigorosa. As comissões de inquérito são materialmente autoridades judiciárias, no que respeita aos factos que investigam e às responsabilidade políticas que visam apurar. É a própria lei dos inquéritos que remete para o processo penal em inúmeras situações. Nos casos omissos, o processo penal aplicar-se-á também subsidiariamente.
Aqui, não há sequer caso omisso. Interpretando o artigo 34º/4 da Constituição, o processo penal e o artigo 13º da lei dos inquéritos, verifica-se que são directamente aplicáveis e dão conta do problema. Não há assim qualquer aplicação analógica (e ilegal) da norma excepcional da Constituição. Como eu dizia, a excepção é outra regra distinta da regra principal.
Percebo as reservas de Eduardo Maia Costa e percebo as dúvidas e as cautelas de muita gente. Estamos habituados e formatados para ver a justiça e a política como domínios absolutamente separados. Temos motivos para isso. Essa separação sedimentou-se ao longo da História. É um processo complexo que, entre outras causas, resulta da nossa necessidade em definir espaços da organização política protegidos da imprevisibilidade da política e das paixões da democracia. O poder judicial é um desses espaços. Os juízes não são eleitos, nem os políticos podem fazer justiça.
E, no entanto, devem os juízes "administrar a justiça em nome do povo", diz a Constituição, e devem os políticos fazer justiça, não a justiça, mas outra justiça, uma justiça que seja deste tipo. Por isso, há sempre momentos em que justiça e política inevitavelmente se cruzam, momentos em que um juíz é obrigado a pensar politicamente e um político, juridicamente. Podemos pensar em muitos exemplos da primeira situação. Dou um exemplo da segunda: a lei dos inquéritos parlamentares nada diz sobre a diferença entre informações públicas e privadas consultáveis pelos membros da comissão. Pensar em termos jurídicos significa que qualquer membro que se documente com o conteúdo destas escutas deve afastar liminarmente o uso e, na medida do possível, o conhecimento de todas as informações privadas.
Bem sei que esta comissão de inquérito não irá a lado nenhum. Não porque esteja tolhida pelo seu próprio labirinto. O problema não é a comissão mas as suas circunstâncias. O PSD não deseja a saída antecipada de Sócrates; e a crise em que estamos metidos assusta toda a gente. Quando vejo os funcionários do governo disciplinados e amestrados para defender o indefensável atacarem, por exemplo, "o filósofo da Marmeleira" ou o relator da comissão, João Semedo, um dos mais interessantes deputados da Assembleia, não estão a mostrar a sua profunda má-fé e ignorância diante dos valores que acabei de referir. Mandam-lhes e eles obedecem. Estão a exibir uma fraqueza infinitamente mais grave: o repúdio pela própria noção de democracia, entendida como controlo e responsabilidade, e pelos meios que temos, mal ou bem, para realizar esse controlo. E como se costuma dizer, não há democracia sem democratas. É verdade.