No livro que citam defendo a prevalência (e separação) da responsabilidade política sobre a responsabilidade penal, a partir de uma perspectiva essencialmente consequencialista: a função da responsabilidade política distingue-se evidentemente da responsabilidade criminal pelos efeitos (óbvios) decorrentes de cada uma das responsabilidades. Exactamente como tenho defendido coerentemente desde que escrevo sobre o tema (por exemplo, aqui ou aqui) e exactamente para afastar situações de criminalização da responsabilidade política (o caso do sangue contaminado em França ou Portugal é talvez o melhor exemplo do assunto, quando membros do governo foram submetidos a processos de responsabilidade criminal por factos que teriam sido melhor apreciados dentro da responsabilidade política). Isso não quer dizer que não haja pontos de contacto entre as duas responsabilidades (e no mesmo livro até exemplifico com alguns tipos previstos na leis dos crimes de responsabilidade ou com os procedimentos de responsabilização política, quando visam suspender um titular de cargos políticos que foi alvo de um procedimento criminal.) Uma comissão de inquérito, por exemplo, não representa qualquer criminalização da responsabilidade política, visto que não é um tribunal nem decide sobre a responsabilidade penal de ninguém, embora se saiba que as comissões têm natureza simultaneamente política e para-judicial.
Mas estes rapazes não perceberam em que é que consiste a criminalização da responsabilidade política: a instauração de procedimentos criminais e o julgamento judicial de governantes por factos que deveriam ser apreciados no âmbito dos mecanismos de responsabilidade política. Nem perceberam o que significa proteger um espaço autónomo para a afirmação da responsabilidade política: permitir que os órgãos de soberania (isto é, o Parlamento) investigue, apure e sancione factos demonstrativos de responsabilidades políticas recorrendo, de acordo com critérios de publicidade e proporcionalidade, aos documentos disponíveis (tudo o que se espera de uma comissão de inquérito). E também não perceberam o meu último ponto que era uma reflexão mais teórica e mais histórica sobre a tensão inexorável que existe sempre entre política e justiça. Dizer que há casos em que um juíz deve pensar politicamente não tem nada de assinalável. Um grande juiz numa democracia é forçado muitas vezes a pensar nas consequências políticas das suas decisões (há até quem fale em interpretação judicial responsiva, para esse tipo de casos). Um grande parlamentar numa democracia também deve pensar num sentido jurídico e os processos de responsabilidade política são também, devem sê-lo, processos jurídicos. Leiam os discursos de Burke no processo de impeachment contra o governador da Índia Warren Hastings e perceberão porquê. Daí aquela frase habitualmente muito citada que, salvo erro, também cito no meu livro, "a responsabilidade política e a responsabilidade penal não se confundem, nem se excluem".
Não separo os meus interesses e convicções académicas das minhas posições políticas. Pelo contrário: faço para que as segundas estejam apropriadamente fundadas pelas primeiras. A responsabilidade política é um tema que me é caro, por isso o estudei a fundo e por isso desejaria que o regime político português incorporasse melhor os seus valores. Por isso também entendo que o princípio da responsabilidade política justifica a restrição de certos direitos fundamentais dos titulares de cargos políticos, na medida necessária para o cumprimento democrático dos seus deveres de responsabilidade.
O tema das escutas na comissão de inquérito é "controverso" com "argumentos ponderosos" para os dois lados, disse o penalista Pedro Caeiro no Mar Salgado. Sei que é e as respostas não são fáceis. Há opiniões jurídicas claramente a favor da utilização daqueles documentos (vejam aqui) e uma delas do único académico português (Nuno Piçarra) que estudou a fundo as comissões parlamentares de inquérito e que foi tratado por aquelas personagens como alguém sem "notoriedade". E também há opiniões contrárias. Ontem mesmo passei os olhos pela anotação de Germano Marques da Silva numa constituição anotada e pareceu-me que ele afirma que a questão não está clarificada. (Embora, devo reconhecer, tivesse posição contrária). Agora, opiniões jurídicas de quem não assina com o seu próprio nome, nem aceita ser identificado, ao mesmo que vigia as dos outros, têm o mesmo valor que lixo.
Por mais que lhes custe, não há, como disse, qualquer contradição entre o que tenho escrito e os meus textos académicos sobre a responsabilidade política. Mas a canalhice destas personagens não tem emenda. Sabem que o assunto é complexo, que demora a tempo a clarificar, que pressupõe uma noção sobre o que é a criminalização da responsabilidade política ou a confusão entre as duas responsabilidades que os leitores deles certamente não terão. É uma táctica clara de difamação, porque me atinge profissionalmente. Aconselho-vos mais calminha, rapazes, senão acreditem que será mesmo à bruta.
Há um último ponto que, rapidamente, já agora, coloco a quem tiver interesse no tema. Sabendo que a liberdade de expressão protege o anonimato dentro do debate público sob certas condições e nenhuma se refere ao anonimato financiado pelo Estado para difamar profissionalmente terceiros, qual deverá ser a relação entre anonimato e responsabilidade, isto é, entre liberdade de expressão anónima e a responsabilidade por essa mesma expressão? Pondo a pergunta de outra forma: quando é que um anónimo que participa no debate público deve ser responsabilizado pelas suas declarações? É um tema jurídico interessante e bem importante. O anonimato dos abrantinos protege-os de qualquer responsabilidade pelo que dizem e por isso lhes confere uma liberdade de expressão quase ilimitada em relação a quem assina com o seu nome. Isso representa uma violação da igualdade entre as pessoas que deve existir num sistema de liberdade de expressão dentro do debate público. Estes anónimos podem ser maus e patéticos a inventar contradições alheias que não existem mas, enfim, são um bom caso prático e um bom tema de investigação.
Adenda: Vejo que o João Pinto e Castro adere à marcha. Talvez me pudesse explicar onde é que está a contradição frasquilhense. Mas suspeito, posso estar enganado, que o conhecimento do JPC sobre estes temas é igual ao meu sobre a curva de laffer.
Adenda2: Isabel Moreira desenvolve aqui um ponto: a necessidade de uma ponderação concreta, à luz do artigo 18º e do princípio da proporcionalidade, entre os valores conflituantes em presença (o Estado de direito constitucional e a reserva da vida privada) para legitimar o acesso da CPI aos documentos. Eu diria que há uma dupla ponderação: do poder judicial na disponibilização dos documentos e do poder político (embora investido de poderes para-judiciais) na sua solicitação. A necessidade dessa ponderação mostra bem porque é que uma simples análise literal do artigo 34/4 da Constituição não resolve o problema. Não resolveu para o magistrado de Aveiro, não resolveu para Pinto Monteiro e também não resolveu para o próprio presidente da comissão de inquérito que começou inicialmente por permitir a consulta e o recurso às escutas e depois, de supetão, proibiu o seu uso. Embora não conheça o despacho de Mota Amaral nem o regulamento desta comissão, tenho muitas dúvidas sobre a competência de Mota Amaral para tomar esta decisão. Além da imensa trapalhada que tudo isto significa. Então Mota Amaral proíbe as escutas depois de um dos membros da comissão as ter consultado e ter formado a sua convicção sobre os factos? Um cenário absurdo. Será recorrível esta decisão de Mota Amaral, enquanto presidente de um órgão colegial, se os membros da comissão assim desejarem? Deve ser. Mas recorrível para quem? Boa pergunta.