Para ilustrar aquilo que escrevi neste artigo do Público, republico o excelente texto de Vital Moreira de há uns anos a que fiz referência no meu texto, com sublinhados meus. Devo dizer que Vital Moreira é tão estrito no que respeita à sua teorização da responsabilidade política que inclui factos da vida particular e anteriores ao desempenho de funções governativas, duas circunstâncias que já teriam liquidado José Sócrates há muito tempo. Eu nem sou tão exigente como ele. Não creio por exemplo que um primeiro-ministro devesse ser demitido por "fraude académica". É assunto a discutir.
Quanto às acusações de desonestidade intelectual que li por aí, julgo que o melhor é lerem o texto. Finalmente, sobre a falta de paralelismo entre os factos que eram imputados a Paulo Portas no contexto da Universidade Moderna e uma pretensa ausência de factos relativos a José Sócrates no caso "Face Oculta", esclareço que todos os que defendem a efectivação da responsabilidade política de José Sócrates pelo conteúdo das conversas com Armando Vara, estão precisamente a sustentar que os factosneste caso devem ser esclarecidos até ao limite através dos canais institucionais da responsabilidade política. Como se diz num país que sabe bastante mais do que nós de responsabilidade política (Reino Unido), antes da responsabilidade política sancionatória, há primeiro lugar a uma responsabilidade política informativa e justificativa. Esqueci-me ainda de referir que todos estes factos no "affair" da Universidade Moderna em 2002 vieram a público em sucessivas violações do segredo de justiça. Na altura não me lembro que tivessem protestado.
"Responsabilidade Política", por Vital Moreira, Público, 24-09-2002
A linha de defesa do ministro Portas no “affaire” Universidade Moderna tem assentado em três argumentos: primeiro, que os factos que lhe imputam respeitam à sua vida particular e são anteriores e alheios ao desempenho das actuais funções governativas; segundo, que tais factos já foram objecto de investigação policial, não figurando ele entre os acusados pelo Ministério Público no âmbito do respectivo processo judicial; terceiro, que, estando a questão em julgamento no tribunal competente, é ilegítimo transportá-la para o foro do debate político. Sucede, porém, que sob o ponto de vista de uma teoria da responsabilidade política num Estado democrático, nenhum destes argumentos é minimamente procedente.
Quanto ao primeiro argumento, é evidente que a responsabilidade política não tem a ver somente com os factos praticados no exercício de cargo públicos. A conduta particular, mesmo anterior e sem qualquer relação com o mandato exercido, pode ser relevante e desencadear procedimentos de responsabilidade política. Grande parte das demissões de ministros por essas democracias fora devem-se a factos da vida particular, mesmo anteriores ao exercício do mandato. Por exemplo, dificilmente se poderia compreender que se pudesse manter como ministro das Finanças quem se descobre ter defraudado dolosamente o fisco, ou ministro da Educação quem tenha sido punido por fraude académica. O exercício de cargos políticos requer um mínimo de honorabilidade e dignidade de conduta e de carácter. Um político pode não ter de ser instruído nem competente, mas seguramente não pode ser um biltre ou um vigarista caracterizado.
Também não tem nenhuma valia o argumento de que os factos aduzidos não foram considerados criminalmente relevantes. Na verdade, ao contrário do que muitas vezes parece entre nós, a responsabilidade política não se confunde com responsabilidade criminal. Por um lado, pode haver crimes que não relevam para efeitos de responsabilidade política. Por outro lado, e sobretudo, pode haver responsabilidade política por factos criminalmente irrelevantes. Desde logo, existem outros tipos de ilícito além do ilícito criminal, como o ilícito disciplinar e o ilícito administrativo. Por exemplo, a maior parte das faltas em matéria fiscal não constituem crimes, podendo porém ser as mais devastadoras sob o ponto de vista da responsabilidade política. Depois, existem crimes que o Ministério Público só por si não pode acusar, por dependerem de participação de terceiros. Além disso, a lógica da responsabilidade política não tem a ver sequer com a existência de factos ilícitos, podendo limitar-se a condutas moralmente reprováveis ou politicamente censuráveis.
Também não tem nenhuma valia o argumento de que os factos aduzidos não foram considerados criminalmente relevantes. Na verdade, ao contrário do que muitas vezes parece entre nós, a responsabilidade política não se confunde com responsabilidade criminal. Por um lado, pode haver crimes que não relevam para efeitos de responsabilidade política. Por outro lado, e sobretudo, pode haver responsabilidade política por factos criminalmente irrelevantes. Desde logo, existem outros tipos de ilícito além do ilícito criminal, como o ilícito disciplinar e o ilícito administrativo. Por exemplo, a maior parte das faltas em matéria fiscal não constituem crimes, podendo porém ser as mais devastadoras sob o ponto de vista da responsabilidade política. Depois, existem crimes que o Ministério Público só por si não pode acusar, por dependerem de participação de terceiros. Além disso, a lógica da responsabilidade política não tem a ver sequer com a existência de factos ilícitos, podendo limitar-se a condutas moralmente reprováveis ou politicamente censuráveis.
Por último, também não colhe o argumento de que, estando uma questão pendente de julgamento judicial, a condenação política de um ministro por causa dela significaria uma violação da separação de poderes. Este é de resto o argumento mais bizarro de todos. Existe obviamente uma separação entre o foro judicial e o foro político, mas nada impede uma acusação (e eventual condenação) na ordem política, justamente porque se trata de um juízo totalmente distinto e independente da ordem penal. Mesmo que o visado tivesse sido acusado de qualquer crime e estivesse a ser julgado por ele, é evidente que a pendência do processo não impediria a censura política no lugar próprio pelos mesmos factos, ou seja, em sede parlamentar e da opinião pública.
A ligeireza com que estes argumentos foram aduzidos pelo interessado e seus apoiantes e a facilidade com que foram acriticamente secundados por alguns comentadores e analistas não deixa de causar a maior preocupação quanto ao estado de saúde da nossa democracia em termos de “accountability” e responsabilidade política. Num país democraticamente maduro, o que estaria em discussão era a substância do problema (ou seja, a censurabilidade política dos factos em causa) e não a legitimidade ou pertinência da apreciação da conduta do ministro sob o ponto de vista da sua responsabilidade política.
Ora, quanto à substância, o mínimo que se pode dizer, face ao que se conhece, é que o ministro Paulo Portas se encontra em maus lençóis. Por várias razões.
Ora, quanto à substância, o mínimo que se pode dizer, face ao que se conhece, é que o ministro Paulo Portas se encontra em maus lençóis. Por várias razões.
Primeiro, porque não são poucas nem politicamente insignificantes as acusações de que é alvo. Dificilmente se podem subestimar as passagens que lhe dizem respeito no relatório da Polícia Judiciária sobre o caso Moderna (e outras entretanto vindas a público), incluindo as menções da falta de documentação das transferência financeiras da Universidade Moderna para a empresa por ele gerida, do financiamento de despesas particulares e partidárias do mesmo, do benefício pessoal de despesas luxuriantes pagas pela mesma universidade (entre as quais o célebre Jaguar).
Segundo, porque a gravidade dessas acusações — até agora sem desmentido convincente — é acentuada dramaticamente pelo passado “justiceiro” do mesmo Paulo Portas, que entretanto, então como director do semanário “Independente”, se dedicava, com desvelo e sanha, a demolir metodicamente governos e ministros (do mesmo PSD de quem é agora aliado), muitas vezes com base em acusações bastante menos importantes ou consistentes do que as que agora lhe são assacadas. Isso cria um problema de incoerência de carácter e de contradição política, que tem constituído o mais embaraçoso escolho do ministro em todo este “dossier”. Quem fez de super-Catão contra outros, não pode agora limitar-se a queixar-se de que está a ser vítima de “character assassination” sem se dar ao trabalho de esclarecer convincentemente perante o Parlamento e a opinião pública os factos que lhe são apontados.
Terceiro, porque ele tem adoptado uma postura entre a arrogância e o destempero, que nada ajuda à sua posição. Recusou-se sobranceiramente a esclarecer o caso perante o Parlamento, sede própria para o efeito, com o devido contraditório político público. Preferiu “explicar-se” sem contradita política num canal de televisão. Respondeu depois irritadamente a perguntas da imprensa na sua residência oficial de ministro da Defesa e no contexto de uma cerimónia oficial. Por último, convocou uma manifestação de apoio pessoal, para uma patética liturgia de fidelidade sem paralelo entre nós desde a implantação da democracia, a fazer lembrar as ridículas jornadas de desagravo do Estado Novo. Nada disto é conforme aos cânones democráticos. Tudo isto só contribui para agravar a sua posição e desacreditar a política.
Provavelmente a teimosia e a insensibilidade do ministro vão fazê-lo resistir ao pedido unânime da oposição e de boa parte da imprensa para a sua demissão. Presumivelmente o primeiro-ministro vai continuar a reiterar-lhe a confiança, temeroso de que a saída do chefe do partido menor da coligação possa arrastar a queda do Governo. Mas dificilmente um e outro passarão incólumes esta provação. Nada indica que o lamaçal do processo da Universidade Moderna deixe de continuar a salpicar Paulo Portas. E pode não ser necessário muito tempo para que Durão Barroso se dê conta de que a manutenção do enfraquecido e vulnerável ministro da Presidência e da Defesa bem pode ser uma pesada hipoteca para o futuro do Executivo.
Depois de ter sido o flagelo do último Governo do PSD, Paulo Portas pode vir a ser o coveiro do actual. Tal como na fábula da rã e do escorpião, está na sua natureza?