Aterremos

O legado que José Sócrates deixa no país será obviamente terrível. Grande parte dos danos com que viveremos bastante tempo é fácil de prever. Mas já se sente outro efeito, talvez menos evidente, mas igualmente nefasto.
Ao deixar extremar tanto a luta, ao arrastar para o lamaçal político tantas instituições do Estado que deviam permanecer acima desse plano e ao resistir tão teimosamente à sua inevitável queda, o primeiro-ministro tem igualmente levado alguns dos seus opositores a perder o sentido das proporções.

A qualificação da propositura de uma providência cautelar como acto de censura é um disparate manifesto que só foi possível ver sustentado ontem e hoje por tantos neste clima de paranóia incandescente criado por José Sócrates.

Assim como o infeliz caso Mário Crespo (agora uma espécie de Leónidas) que em condições normais não teria o tratamento desproporcionado que teve. É claro que um primeiro-ministro num contexto semi-privado pode criticar um jornalista; é claro que quem sinta um seu direito potencialmente ofendido por uma publicação pode propor uma providência cautelar para impedir a respectiva divulgação; é claro que um governante pode criticar jornalistas em entrevistas ou discursos (talvez não seja politicamente hábil, mas isso são outras considerações); é claro, por fim, que um governante pode processar um jornalista que considere ter agido ilicitamente.

Mas também é claro que sabemos que este primeiro-ministro, tendo feito coisas que seriam relativamente indiferentes noutras circunstâncias, cometeu actos gravíssimos de controlo e manipulação da comunicação social. Este primeiro-ministro obrigou os habitualmente sensatos e cépticos a acreditar em teorias de conspiração.

Precisamos que estes últimos actos não fiquem em claro; precisamos que o bom-senso regresse para que os primeiros não sejam vistos como mais do que são. Precisamos, em suma, daquilo que mais nos tem faltado: normalidade.