A questão da criminalização da responsabilidade política

"E, no entanto, devem os juízes "administrar a justiça em nome do povo", diz a Constituição, e devem os políticos fazer justiça, não a justiça, mas outra justiça, uma justiça que seja deste tipo.

1. Este texto, aviso já, é longo e necessário. Usei a frase com que começo o texto, nestes exactos termos, no meu post "A comissão e as suas circunstâncias". A frase, se bem repararam, termina com um link para o título de um livro do teórico alemão Otto Kircheimer intitulado Political Justice, um livro publicado nos anos 60 do século passado (o link foi entretanto ocultado pelos membros do blog Câmara Corporativa, na transcrição que fizeram da mesma frase). A construção que usei destinava-se a ilustrar a tensão inevitável que sempre existe, e sempre existiu, entre política e justiça nos procedimentos de responsabilização política. Em bom rigor, será melhor qualificá-la como uma tensão entre democracia e poder judicial, mas já lá irei. Convém dizer que a responsabilidade política é um procedimento conduzido por políticos com finalidades políticas: a sanção do mau governo, o cumprimento de normas de conduta política, a exposição e condenação pública do abuso de poder e de condutas políticas censuráveis, a remoção do poder de governantes que ultrapassaram todos os limites. Digo "conduzida por políticos" para me referir sobretudo aos parlamentares, porque são os parlamentos os representantes directos da vontade do povo e a responsabilidade política não tem outro objectivo último senão proteger a identidade entre governantes e governados, impedindo o poder governativo de trair ou subverter a delegação de poder popular que recebe através do Parlamento. As comissões de inquérito são um dos instrumentos, diria o mais excepcional, de materializar o princípio da responsabilidade política.

2. A realização daqueles objectivos corporiza aquilo a que chamei, sem originalidade, justiça política, apropriando-me do título de Kircheimer. No meu livro "Teoria da Responsabilidade Política" refiro-me a estes aspectos, ao abordar a relação entre responsabilidade política e moralidade política. Justiça política ou moralidade política nada têm que ver com justiça criminal. Não é essa justiça penal que os procedimentos de responsabilização política realizam. Ninguém pode ser obviamente condenado a cumprir uma pena no contexto de um procedimento de responsabilidade política (isto hoje parece-nos óbvio, mas não o era no passado e ainda hoje os procedimentos de impeachment nos regimes presidencialistas são um bom exemplo de procedimentos simultaneamente de responsabilização política e criminal); os pressupostos da responsabilidade penal também não são tidos em conta na responsabilidade política. Por isso, tal como escrevi, ao mencionar a ideia de que os políticos devem fazer justiça (política) mas não a justiça significa que os políticos, no quadro dos procedimentos de responsabilidade política, devem orientar-se pelas finalidades próprias dessa forma de responsabilidade: investigar factos e condutas políticas, imputáveis a titulares do poder executivo, para as apreciar e, se for o caso, censurar no plano político. Devem assegurar o bom governo e proteger aquilo a que os anglo-saxónicos chamam moralidade política. Não se podem substituir aos poderes condenatórios dos tribunais, não podem julgar, punir, prender, coagir ou apurar ilícitos penais de qualquer governante (tal como não podem efectivar responsabilidades civis). Apreciam e sancionam os "ilícitos" políticos. Tudo isto estava expresso no meu post. Tudo isto também se encontra no meu livro.

3. Fui no entanto acusado mais do que uma vez, pelos funcionários e anónimos cobardes deste blog de assessores, depois de terem transcrito excertos do meu livro "Teoria da Responsabilidade Política", de manter dois discursos sobre as relações entre responsabilidade política e responsabilidade penal, contradizendo o que escrevi acerca da criminalização à responsabilidade política; um discurso, motivado por preconceitos políticos e favorável a essa criminalização; e outro, no plano universitário, reagindo contra essa criminalização. Já afirmei que esta é uma mentira que me atinge profissionalmente perante os meus colegas, alunos e professores das instituições universitárias a que estou ligado. Sugerem insultuosamente que aquilo que já escrevi no plano universitário é atirado para o lixo no plano político. Tenho boa couraça contra insultos pessoais e contra discordâncias virulentas. Mas não estou disposto a aceitar ataques mentirosos e canalhas no plano profissional que põem em causa a minha integridade. Como acredito na liberdade académica como uma liberdade inseparável de determinados "standards" éticos e como vejo a mentira repetida novamente neste segundo post (e acreditem que reagirei contra ela de modo próprio), reafirmo que só a mais descabelada má-fé me pode acusar de contradição na posição que defendi a respeito da utilização das escutas do Face Oculta pela comissão parlamentar de inquérito. Como juristas que são, estas pessoas sabem o que fazem e o que dizem. Sabem o que percebem e o que não querem perceber.

4. No meu livro "Teoria da Responsabilidade Política" procuro distinguir responsabilidade política e responsabilidade criminal tal como faz a Constituição e também a doutrina portuguesa. Essa separação resulta, desde logo, do artigo 117º da Constituição, mas também dos fins e consequências específicas de cada uma das responsabilidades, dos pressupostos em que assentam, dos procedimentos pelos quais se desenrolam. Mais: no meu livro insurjo-me também contra aquilo a que se tem chamado, nas últimas décadas, de "criminalização da responsabilidade política" e defendo que o esquema de responsabilidade preferencial para avaliarmos e reagirmos contra condutas políticas é e deve ser a responsabilidade política. (Nada disto, de resto, tem que ver com os poderes das comissões de inquérito, que eu nem sequer discuto no livro). Nas últimas décadas este fenómeno tem sido abundantemente discutido em França; e também foi em Portugal (recordam-se do processo-crime que foi instaurando a Leonor Beleza, por causa do plasma contaminado?).

5. O que significa essa tendência reconhecível em muitos regimes políticos para a "criminalização da responsabilidade política"? Como a própria palavra sugere, criminalizar a responsabilidade política significa, em primeiro lugar, usar os procedimentos de efectivação da responsabilidade criminal para afastar governantes do poder através de processos e condenações penais. Em vez de os "ilícitos" políticos serem apreciados e "julgados" em sede política, são os procuradores públicos e os tribunais criminais que se substituem aos parlamentos na responsabilização (criminal) dos governantes. A responsabilidade criminal toma, pois, inteiramente o lugar da responsabilidade política. A perda do poder, sanção última da responsabilidade política, é substituída pelo cumprimento de penas e outras sanções criminais. Foi exactamente isso que se tentou, no início dos anos 90, no processo-crime contra Leonor Beleza, porque as responsabilidades dela como ministra da sáude eram políticas e deveriam ser apreciadas nessa instância. Por outro lado, a criminalização da responsabilidade política consiste também em usar o direito penal para prevenir e punir condutas políticas defeituosas. O exemplo no nosso direito é a lei que define os crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos (Lei nº 34/87). Muitos daqueles tipos penais são discutíveis e provavelmente inaplicáveis, por traduzirem essa mesma criminalização. Tivemos um bom exemplo disso com o crime de atentado contra o Estado de Direito previsto na mesma lei que o procurador de Aveiro considerou preenchido, baseado nas escutas entre Armando Vara e José Sócrates que Noronha da Costa declarou nulas. O preenchimento daquele crime tem uma dimensão política e uma subjectividade tão evidentes (o conceito de Estado de Direito) que ficou demonstrado que a criminalização da responsabilidade política é a pior solução para responsabilizar politicamente os governantes. Porquê? Porque os tribunais e o poder judicial enfrentam sistematicamente nos processos políticos tensões no confronto com outros órgãos de soberania, porque acabam presos e desgastados pela luta política, porque enfrentam questões de legitimidade, porque as suas decisões podem ser contestadas de uma forma que põe em causa a sua credibilidade. Na verdade, temos assistido a tudo isto nos últimos tempos.

6. Temos agora as chamadas comissões de inquérito parlamentar, como esta relativa ao caso PT/TVI. Para os não-juristas, notemos que, tal como diz a Constituição e a lei, "têm por função vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis e apreciar os actos do Governo e da Administração". Enquadram-se por isso nos procedimentos de responsabilização política, na fiscalização política do poder executivo; são comissões constituídas no parlamento, visam o escrutínio de actos políticos, tudo isto se sabe. Actos políticos que podem ou não indiciar a prática de crimes e não é impossível a realização de um inquérito parlamentar "paralelo" a um inquérito penal, sem que haja confusão entre as duas responsabilidades. No entanto, segundo a Constituição, as comissões também gozam de poderes de investigação análogos às autoridades judiciais. Como muita gente afirma, têm um estatuto misto (político e para-judicial). Os inquéritos parlamentares são procedimentos de responsabilização política, no decurso dos quais são admissíveis poderes de investigação judicial mediante colaboração das autoridades judiciais.

7. Como explicar tamanha coisa? Uma comissão que tem poderes judiciais para realizar um inquérito político? Uma comissão que pode solicitar a colaboração do Ministério Público e dos tribunais? Não será isso uma violação grosseira da separação de poderes? Não haverá confusão entre responsabilidade política e responsabilidade penal? Não se poderá dizer que as comissões de inquérito parlamentar, no exercício dos seus poderes de investigação judicial, consubstanciam um caso de criminalização da responsabilidade política? Não. Apesar de a Constituição lhes conferir poderes de investigação próprios das autoridades judiciais (o artigo 178/5) e a lei dos inquéritos lhes permitir requerer o direito à coadjuvação de outras entidades públicas, incluindo tribunais, e de solicitar documentos judiciais pertinentes para o inquérito (art. 13º da lei dos inquéritos), as comissões de inquérito estão impedidas de condenar criminalmente e de julgar à luz do direito penal político os governantes objecto de inquérito. Têm poderes de investigação judicial, mas sem que isso as transforme em órgãos judiciais. Têm poderes instrutórios, mas sem que isso os transforme em juízes de instrução. Embora possa haver pontos de contacto entre ambas, as comissões de inquérito não efectivam responsabilidades criminais ou civis de nenhum governante. Não julgam, não prendem, não obrigam ao cumprimento de penas, etc. Por que são então investidas de poderes judiciais se a responsabilidade que apuram é exclusivamente política? A pergunta é interessante. Obrigar-nos-ia a revisitar historicamente o papel das comissões de inquérito e a traçar uma fronteira, que tem de existir, entre o poder parlamentar (na sua função de responsabilização política) e o poder judicial. De qualquer maneira, o fundamento desses poderes só pode ser o compromisso intenso do regime político português com a democracia, entendida como controla e responsabilidade dos titulares do poder: as comissões de inquérito são órgãos parlamentares e, nessa qualidade, titulares de um mandato que advém directamente do povo. Devem escrutinar o poder executivo à luz e no comprimento desse mandato democrático. Se exercem poderes de investigação judicial, é para concretizar o princípio democrático, é para permitir que o povo possa conhecer os responsáveis por condutas políticas nocivas que nunca aprovaria nem poderia aprovar se as tivesse conhecido. Com limites? Com certeza. Mas é à luz desta prevalência da democracia e, por via desta, da responsabilidade política que devemos entender os poderes judiciais das comissões de inquérito.

8. As comissões de inquérito encontram-se por isso nesse território de fronteiras instáveis entre a democracia e a justiça. Não tanto entre responsabilidade política e responsabilidade criminal, porque só podem apurar e decidir sobre "ilícitos políticos" e porque as suas diligências não tem quaisquer consequências em sede penal. Como é evidente, são essas fronteiras instáveis que colocam dúvidas neste caso das escutas da comissão ao caso PT/TVI. Existem problemas na delimitação dos seus poderes de investigação e, em particular, na compabilização entre os poderes de investigação das comissões de inquérito e os direitos fundamentais, mas não existe qualquer confusão entre responsabilidade política e responsabilidade penal. O objecto da comissão ao caso PT/TVI não é apurar se Sócrates cometeu um crime mas se Sócrates conhecia a operação política conspirativa na compra da TVI no ano passado, em véspera de eleições. Onde começam e terminam então os poderes de investigação das autoridades judicais atribuídos às comissões de inquérito? Vou voltar a este ponto num próximo post. Para já, concluo como comecei: as contradições de que fui acusado, por tratar este tema em dois contextos profissionais distintos, são uma absoluta efabulação de um bando de cobardes que vivem a coberto do anonimato. É uma desqualificação pessoal e profissional verdadeiramente digna do KGB, escola em que estes badamecos bebem todos os dias.

(texto corrigido)